segunda-feira, 20 de setembro de 2010

As máscaras do nosso tempo

Marcio Salgado*



Cada época cria as suas próprias máscaras; anuncia o que é permitido e o que é proibido, produz a sua arte e a sua ciência, os seus valores e os seus odores, a sua memória e o seu esquecimento. A época em que vivemos é a moldura do nosso retrato. Por isso podemos dizer: que época feia aquela em que vivemos sob o domínio do medo e da opressão. Ou ainda, que tempos maravilhosos aqueles em que renasceram os nossos anseios de liberdade. Nas duas situações lá estamos nós revelados de corpo e espírito inteiros.
O pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) viveu em uma época de transição: a modernidade anunciava-se no horizonte, ao tempo em que a cultura medieval persistia no seu declínio. Ele não se limitou a contemplar os costumes vigentes, mas lançou à terra as sementes modernas que tinha nas mãos.
Os escritos de Montaigne fazem sentido atualmente, não porque contenham um sentido profético. Eles revelam as experiências do autor, as suas opiniões sobre os temas mais controversos. Ao retirar a máscara que esconde a sua verdade, ele revela muito mais do que a si próprio, e o faz com a intenção de alcançar o outro na sua universalidade.
Com a produção dos Ensaios, Montaigne criou um novo gênero literário. A sua narrativa apóia-se na observação direta e na pintura do próprio eu. Os três volumes dos Ensaios totalizam mais de uma centena de capítulos sobre diversos temas. Eles foram escritos num período aproximado de vinte anos, a partir de 1572 até a morte do autor em 1592. Não há método preestabelecido na sua elaboração. Montaigne observa o mundo em movimento e retira dele a matéria para as suas reflexões. Estas resultam de uma interação entre eu/mundo, sendo a autocrítica uma arma valiosa, que desarma o autor das suas enganosas certezas; assim pode rir de si mesmo com uma boa dose de ironia.
Ele busca sempre a verdade de Montaigne, não uma verdade abstrata, mas a que se esconde atrás do último acontecimento vivido. O mundo é acontecimento não só para os contemporâneos desta sociedade ultramoderna. O século XVI das navegações de longo curso e das novas terras descobertas, fora também das guerras religiosas e do renascimento.
Afirma o autor dos Ensaios: “É preciso tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas” (Livro I, cap. 20). Ao ler a sua mensagem hoje, fico a me perguntar se é possível viver sem máscaras em sociedade. A resposta parece-me evidente demais para ser respondida. O autor afirma que em sua época se distingue muito pouco o indivíduo das suas máscaras. Refere-se, em tradução atual, a um viver na aparência.
Ora, é no reino das aparências que se vive hoje. E não a contragosto, mas apegado a um sistema de valores que dirige o comportamento para o consumo das idéias e dos sentimentos alheios. É um viver no outro. Em alguma época já se chamou a isso de alienação. O sistema dirige as necessidades e os desejos. É com grande frustração que o indivíduo constata essa evidência. Começa aí uma busca incessante: o que ele deseja é pertencer a um mundo que, em essência, é do outro. As sedutoras faces do mundo só raramente ostentam a crueldade que de fato escondem. Não que o mundo seja desprovido de beleza e movimento. Ele conclama o indivíduo a encontrar-se na sedução das coisas. Será possível encontrar-se consigo mesmo no outro?
Leio o autor dos Ensaios da maneira como ele lê os clássicos: “Tenho sempre na alma a idéia de uma forma melhor do que a executada, mas não a consigo apreender nem explorar; de resto esta idéia mesma é apenas medíocre. Verifico assim que as produções dessas ricas e grandes almas da antigüidade se encontram muito além do extremo limite de minha imaginação e de meu desejo” (Livro II, cap. 17).
Há nos seus escritos uma virtude essencial: ele jamais se esconde. No meio das suas reflexões, o leitor sempre o encontrará. “Digo a verdade, não tão cruamente quanto desejara, mas na medida das minhas forças (...) Em outros casos, pode-se apreciar a obra e não gostar do autor; no meu caso, não” (Livro III, cap. 2).
Montaigne fez carreira no Parlamento de Bordeaux e ocupou cargos importantes na administração municipal; chegou a mairie (cargo equivalente ao de prefeito). Parece óbvio que não se sentia confortável no desempenho do ofício, tendo abandonado a vida pública para dedicar-se à literatura. Casou-se com uma filha da nobreza local e com ela viveu o resto dos seus dias, porém, das mulheres não fazia bom juízo. Descreve a si mesmo como um homem forte; gozava de boa saúde, perfazia grandes distâncias a cavalo, mas sofria de pedras (cálculos renais). A morte do escritor Etienne de la Boétie, seu grande amigo e colega, o deixou abalado: “Tudo dividíamos pela metade e hoje tenho a impressão de que lhe roubo a sua parte” (Livro I, cap. 27).
Alguns estudiosos da sua obra o consideram cristão, enquanto outros vêem nas suas idéias o germe do ceticismo: ele seria um precursor de Voltaire. Jamais foi confundido com um moralista; não diz o que é bom para as pessoas, tenta na medida do possível mostrar o real.
Produziu toda a sua obra na maturidade, após recolher-se na torre do seu castelo, onde inscreveu em latim a seguinte mensagem: “No ano de Cristo de 1571, com a idade de 38 anos (...) Michel de Montaigne, desde há muito desgostado da servidão (...) dos cargos públicos, sentindo-se ainda vigoroso, retirou-se para os seios das doutas virgens (as musas), onde calmo e sem se inquietar com a mais pequena coisa, passará o que lhe resta de uma vida já muito avançada.”
Esta prática fora consagrada pelos filósofos da antigüidade na busca de sabedoria e tranqüilidade da alma. O anúncio escrito em latim tem sua justificativa, uma vez que o autor fora alfabetizado nesta língua. Outro aspecto importante neste recolhimento está na afirmação da identidade. Livre das exigências do mundo exterior, dos valores sociais de então, ele vai dedicar a sua existência ao encontro de si mesmo.
Montaigne busca nos autores do passado a lição, mas a sua filosofia surge da interação com a realidade. Ele não se deixa levar pela erudição, o que era uma prática comum em sua época.
“Demócrito e Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a humana condição é vã e ridícula, apresenta-se sempre em público a rir e zombar. Heráclito, tomado de piedade por essa mesma humanidade, andava triste e de lágrimas nos olhos (...) Prefiro o primeiro, não porque seja mais agradável rir do que chorar, mas porque sua atitude é testemunha do seu desdém, porque ela nos condena mais do que a outra (...) Penso que há em nós mais vaidade do que infelicidade, mais tolice do que malícia, mais vazio do que maldade, mais vileza do que miséria” (Livro I, cap. 50).

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Não obstante a beleza destas palavras divirjo do mestre. Não por andar triste, mas por ter alcançado a dinâmica da vida na sua forma mais sutil, prefiro Heráclito: “A vida e a morte, a vigília e o sono, a mocidade e a velhice são, no fundo, uma e a mesma coisa. Uma transforma-se na outra, e esta volta a ser o que era primeiro.”
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* Escritor e ensaísta. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal da Bahia; fez curso de Especialização em Teoria da Literatura, pela UERJ; Mestrado e Doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, com trabalhos que analisam aspectos da modernidade e da pós-modernidade.. marciojsalgado@gmail.com.

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