quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A mãe de todas as lâminas

 Fernando Reinach*

Imagem da Internet

Diariamente, usamos facas e tesouras; ocasionalmente, um machado ou foice. No passado, ficaram as espadas, lanças, flechas e outros instrumentos cortantes. Agora, um achado espetacular empurrou a idade do mais antigo instrumento de corte para longínquos 3,4 milhões de anos atrás, muito antes do surgimento do Homo sapiens.
As lâminas de aço são filhas das lâminas de ferro, que surgiram há 2,5 mil anos (a data varia em diferentes civilizações) e são descendentes das de bronze, desenvolvidas 3 mil anos antes. Até então, elas eram de pedra. Como as lâminas mais antigas foram fabricadas há 2,5 milhões de anos, é fácil deduzir que foi somente nos últimos 0,5% da história das lâminas que elas deixaram de ser feitas de pedras. Compare com os cem anos de história do automóvel. A lâmina de metal corresponde ao último modelo, lançado neste mês. As lâminas de pedra, a todos os modelos anteriores.
Quando, partindo das sofisticadas lâminas de pedra polida, caminhamos em direção ao passado, encontramos as lâminas obtidas de fragmentos lascados sucessivas vezes, chegando finalmente aos fragmentos de pedras, nos quais a superfície cortante era obtida a partir de um número pequeno de lascas. Essas últimas surgiram há 2,5 milhões de anos. O Homo sapiens surgiu faz menos de 500 mil anos, portanto as lâminas de pedra já eram utilizadas por nossos ancestrais.
O problema é como identificar o uso de lâminas muito simples. Juntos a qualquer esqueleto são encontradas pedras, mas, se elas possuem uma só lasca, como saber se eram instrumentos de corte ou simples pedras preservadas junto aos ossos fossilizados?
Quando a arma do crime não pode ser identificada, é possível deduzir sua existência a partir das consequências de seu uso. Não é preciso achar o revólver para saber que um crânio foi perfurado por uma bala. Foi com base nesse raciocínio que os arqueólogos começaram a prestar atenção nos ossos achados nos sítios arqueológicos.
Durante escavações na região de Dikika, na Etiópia, em um estrato arqueológico de 3,39 milhões de anos, foram encontrados dois ossos fossilizados. Ambos com marcas idênticas às obtidas quando usamos um instrumento cortante para retirar a carne do osso.
Um dos ossos é uma costela de um animal grande, do tamanho de uma vaca, no qual foram encontradas marcas em forma de V e diversas marcas típicas de raspagem e percussão. Dada a forma das marcas, fica claro que foi utilizado um instrumento de corte para retirar a carne e um outro para romper o osso e ter acesso ao tutano.
Um segundo osso, um fêmur de um animal do tamanho de um carneiro, também possui múltiplas marcas em sua superfície. A análise das marcas indica que elas foram feitas logo após a morte do animal, muito antes do processo de fossilização. Os únicos hominídeos encontrados nessa formação rochosa de 3,39 milhões de anos atrás são da espécie Australopithecus afarensis (a famosa Lucy), um de nossos possíveis ancestrais.
A conclusão é simples: os Australopithecus afarensis, praticamente 3 milhões de anos antes do surgimento do Homo sapiens, já eram capazes de desossar sua caça com o que talvez seja a mãe de todas as facas. Tudo indica que eles também gostavam de chupar um tutano. Na próxima vez que você utilizar uma faca, lembre que a descoberta dessa tecnologia foi feita pelo pequeno cérebro de um hominídeo. Nós, tão sapiens, só aperfeiçoamos o instrumento.
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*BIÓLOGO
Fonte: Estadão online, 23/09/2010
MAIS INFORMAÇÕES: EVIDENCE FOR STONE-TOOL-ASSISTED CONSUMPTION OF ANIMAL TISSUES BEFORE 3.39 MILLION YEARS AGO AT DIKIKA ETHIOPIA. NATURE, VOL. 466, PÁG 857, 2010

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