terça-feira, 21 de setembro de 2010

Não faças nada

JOÃO PEREIRA COUTINHO*
Imagem da Internet

--------------------------------------------------------------------------------

Doutorados, prêmios, tudo banalidades.
Os momentos de orgulho são os outros.
A perda da virgindade

--------------------------------------------------------------------------------
A CASA pegou fogo. Acordei com um cheiro estranho a madeira queimada. Com calor dantesco nas ruas, meu primeiro pensamento foi imaginar que mente perversa acendera uma lareira no meio do inferno.
Não era a lareira. Uma das paredes da sala estava devorada pelas chamas. Por minha culpa, minha tão grande culpa.
No dia anterior comprei um daqueles aromatizadores moderninhos que, ligados à corrente elétrica, distribui um odor floral pela casa. Ninguém tinha me dito que era necessário remover os plásticos das garrafinhas de perfume. Nem eu imaginei tal evidência. Encaixei os ditos cujos no aparelho e depois liguei à corrente.
A maquineta aqueceu, incendiou os plásticos e, finalmente, a parede. Quando contemplei o resultado da minha inépcia, agarrei dois cobertores (obrigado, Hollywood) e consegui domar o bicho, sacrificando apenas uma parte do meu cabelo.
Exausto e lavado em suor, sentei-me no chão, contemplei a minha nova parede -uma tela negra de Rothko- e então percebi como sou imprestável para a vida prática.
Já tentei repetidas vezes: fazer arranjos em casa; consertar torneiras; pendurar cortinas; trocar lâmpadas; perfumar o lar com aromati zadores florais. Os resultados oscilaram entre desabamentos, inundações, eletrocuções. Um braço quebrado. Um incêndio. Não é normal ser capaz de dissertar por horas sobre a roupa interior da rainha Vitória e não saber tratar da minha.
Por vezes, nos momentos melancólicos em que me surpreendo por ainda estar vivo, revejo o filme da minha existência. Momentos de orgulho? Não, não são os intelectuais. Livros, doutorados, prêmios, processos por abuso de imprensa banalidades, tudo banalidades. Os momentos de orgulho são os outros. A licença para dirigir. Saber nadar. A perda da virgindade. Como foi possível, meu Deus?
Deus não me responde. Eu também não. Mistérios. Quando aprendi a dirigir, havia apostas entre amigos que chegaram a atingir valores dignos de Las Vegas. "Tu vais morrer ou matar alguém", diziam eles, meio a sério, meio a brincar.
Nunca matei ninguém. Nunca me matei. Só ossos quebrados, só cicatrizes para mostrar.
Mas nem isso os convence de que sou moderadamente inofensivo. Ofereço caronas com uma generosidade de Mia Farrow. Há sempre desculpas. "Estou à espera da minha senhora." "João, não leves a mal, mas enjoo no carro." "São só 10 kms, prefiro ir a pé.""
Saber nadar é outro mistério. Aprendi aos seis anos. Um tio, já falecido e tido na memória da família como um psicopata, jogou-me na piscina lá de casa. Bebi dez litros de água, cheguei a ver o túnel, a luz ao fundo, a reconhecer os rostos dos meus defuntos. Mas as palavras do meu tio trouxeram-me de volta para a margem dos vivos: "Não faças nada, não faças nada."
Não fiz nada. Parei de mexer os braços febris, comecei a subir à tona da água e, milagrosamente, a boiar. Foi lição que aprendi para a vida inteira: não fazer nada. Mesmo os momentos de intimidade são repetições do meu afogamento e é a voz do meu tio psicopata que escuto, diretamente do Além. "Não faças nada, não faças nada."
Desconfio que as mulheres com quem já estive em privado ficaram sempre com a impressão de que eu era virgem. Ou tetraplégico. Pobrezinhas. Mal elas sabem que não me mexo para o bem delas. Fico, tipo múmia, e repito ao contrário as palavras do meu tio. "Faz tudo, meu amor, faz tudo."
Nem sempre resisto, é um fato: sou humano e então mexo-me. Não pretendo vangloriar-me por aí. Mas sou dos poucos homens que pode afirmar, sem mentiras ou exageros, que já tive sessões apaixonadas que terminaram no hospital.
Como tudo poderia ter terminado hoje se o meu nariz não fosse apurado como o focinho de um canídeo. Pensando bem, talvez só mesmo o nariz se aproveite no meu desastrado corpo de Inspetor Cluzot.
O nariz: sorte ele estar colado ao meu rosto, imóvel, sem possibilidade de se aventurar pelo mundo. Gosto tanto dele que já pensei em comprar gesso e fazer o molde. Uma réplica a ser adorada dia e noite.
Mas depois penso que, com o jeito que tenho, o mais certo era eu acabar por arrancá-lo.
__________________________
Fonte: Folha online, 21/09/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário