sábado, 16 de outubro de 2010

“Vargas continua sendo uma esfinge”

ENTREVISTA
Lira Neto se diz surpreendido pela falta de uma biografia “moderna e exaustiva” de Vargas


Lira Neto, escritor que prepara biografia de Getúlio Vargas
Biógrafo consagrado de vultos históricos, o escritor e jornalista Lira Neto se dedica há cerca de um ano a um livro sobre a vida de Getúlio Vargas. A obra terá a forma de uma trilogia, com cerca de 500 páginas, em média, por volume. Nascido no Ceará e radicado em São Paulo, Lira diz:
– Na Presidência, ninguém foi mais enigmático, contraditório, ambivalente.
O escritor se esquiva de revelar a data prevista para o lançamento da obra. Aceitou, no entanto, um pedido de Zero Hora para responder, por e-mail, a perguntas sobre seu trabalho. A seguir, um resumo (Luiz Antônio Araujo):

Zero Hora – Por que o senhor decidiu biografar Getúlio Vargas?
Lira Neto – Sempre me surpreendeu o fato de Getúlio ainda não ter sido alvo de uma biografia jornalística, moderna, exaustiva. Vinha flertando com o tema há vários anos. Em 2009, depois de entregar os originais de meu livro mais recente, Padre Cícero – Poder, Fé e Guerra no Sertão, resolvi que era chegada a hora de encarar o desafio. Tem sido fundamental a estrutura, a atenção e o apoio estratégico fornecido pela editora que publicará a obra, a Companhia das Letras.

ZH – Como o senhor define Vargas?
Lira – O melhor biografado é aquele que não pode ser definido com uma única palavra, numa única frase, em um único parágrafo, um único capítulo e, às vezes, nem mesmo em um único livro. No caso de padre Cícero, a pergunta que perpassa as quase 600 páginas da obra é exatamente esta: afinal, quem foi Cícero Romão Batista? Ao final da leitura, se tiver provocado no leitor mais dúvidas do que certezas absolutas, terei cumprido meu papel de biógrafo. Em se tratando de Getúlio, acredito em algo parecido.

ZH – A Era Vargas acabou?
Lira – Bem ao contrário disso. Para o bem e para o mal, ela parece mais viva do que nunca. Ao longo das décadas, muitas vezes decretou-se o fim da chamada “Era Vargas”: em 1954, às vésperas da morte de Getúlio; em 1964, quando do golpe militar; em 1994, com a posse de Fernando Henrique Cardoso, que inclusive pregou em discurso a necessidade de virar tal “página da história”. Nos últimos anos, e particularmente nas eleições presidenciais que acabaram de ser travadas, o legado de Getúlio esteve mais uma vez em questão. Mais vivo e mais polêmico do que nunca.

ZH – Quem, na sua opinião, compreendeu melhor a figura de Vargas entre os historiadores?
Lira – Há inúmeros trabalhos acadêmicos sobre ele. No conjunto, há obras de interpretação interessantes e bem relevantes. Mas ele continua sendo essencialmente uma esfinge.

ZH – Por que não há o que o senhor chama de biografia “exaustiva” dele?
Lira – Isso se deve à riqueza de personagens, cenários e situações da própria história brasileira. Há um vasto território a desbravar. Torço para que alguém um dia escreva, por exemplo, uma bela biografia de Pinheiro Machado.


"O maior erro, e sem dúvida o mais comum,
é tentar dividir a vida de Getúlio em vários “Getúlios”:
o revolucionário de 30,
o ditador do Estado Novo,
o populista do segundo governo,
e por aí afora."

 
ZH – Qual é o método para não submergir nas fontes que constituem, hoje, a existência real de seus biografados?
Lira – O maior erro, e sem dúvida o mais comum, é tentar dividir a vida de Getúlio em vários “Getúlios”: o revolucionário de 30, o ditador do Estado Novo, o populista do segundo governo, e por aí afora. Pode ser mais didático, mas também é mais mecânico, estanque e, portanto, simplista. O mais difícil e o mais excitante é tentar compreender como Getúlio foi capaz de redirecionar os rumos da história brasileira e, ao mesmo tempo, como também se permitiu direcionar e se reinventar a partir das transformações que ele mesmo foi produzindo. Maria Celina D’Araújo, por exemplo, em seus estudos, mostra isso de modo brilhante.

ZH – O senhor biografou o escritor José de Alencar, o padre Cícero e o general e presidente Humberto Castello Branco – cearenses, como o senhor. Como o fato de Vargas ser gaúcho repercute em seu trabalho?
Lira – O fato de ter biografado cearenses não foi, obviamente, uma coincidência. Isso tem relação imediata com o fato de serem personagens que, de um modo ou de outro, fazem parte de meu universo de interesse pessoal desde muito cedo. Mas biografei também a cantora Maysa, que era carioca, criada em São Paulo. Por meio de Maysa, biografei o fim da Era do Rádio e o início do mercado fonográfico, assim como o surgimento da TV e a pré-história da imprensa de celebridades. Getúlio, por sua vez, obviamente, não pertence apenas ao Rio Grande do Sul. Mas também é óbvio que precisei mergulhar fundo na gênese do biografado, procedendo a intensa pesquisa na história gaúcha, tarefa que foi facilitada pela excelência de trabalhos como os de Gunter Axt, Luciano Arrone Abreu, Joseph Love, Sandra Jatahy Pesavento, Maria Antonieta Antonacci, Ricardo Vélez Rodrigues, Eliane Colussi, Mario Maestri, Hélgio Trindade e tantos outros que, independentemente de pontos de vistas e conclusões antagônicas que possam ter, fornecem um painel rico e polifônico do Rio Grande da época. Ao evocar tais nomes assim, de memória, devo ter pecado pela omissão de alguns.
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Fonte: ZH online, 16/10/2010

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