segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A Bíblia: deles e nossa

Ivan Lessa*

Imagem da Internet

Depois desse tempo todo, se me perguntarem o que mais admiro nos britânicos, eu embatucaria. Mas não muito. Tenho a impressão, ou pouco mais que isso, que prezo o apreço que eles têm ao inglês, falado e escrito.
Volta e meia, eu dou um faniquito, neste cubículo em que me encerro, contra o raio da “reforma ortográfica” brasileira. E tomem aspas e um “raio” só para não perder o hábito.
No momento, neste mundo em crise em que temos que viver, há um consolo. A Bíblia Sagrada. E vou logo me confessando: sou ateu. Mas amo a língua, o escrever bem. Qualquer língua. Qualquer coisa bem escrita.
O consolo que a Bíblia em inglês oferece não está se manifestando nem nas ruas nem nas reuniões com entidades políticas e bancárias internacionais. É consolo derivado de outra saudável mania britânica e que se estende, na medida do possível, a todos os povos de língua inglesa, valendo americanos e australianos.
E quando se fala em Bíblia por aqui, está se falando da chamada Versão Autorizada. Por extenso, a versão do rei Jaime. E aí já vou abrindo o primeiro parágrafo para indagar: por que é que até um certo monarca, nós o chamamos pelo nome próprio traduzido?
Henrique, Ricardo, Eduardo. De repente, por um desses mistérios – alguma reforma que desconheço? – virou tudo ao original inglês, sem dublagem, digamos. Henry, Richard, Charles e – chi lo sá? – William e não Guilherme.
Googlarei até chegar a alguma conclusão. E volto ao meu lugar na abadia pomposa ou igrejinha simpática e modesta onde eu folheava a KingJamesAuthorised Version of the Bible, para dar seu nome completo e correto.
Comemorações. Datas assinaladas. Memória preservada. Outras das qualidades que eu acrescentaria à minha lista. Sempre depois das belezas ocultas e óbvias do idioma do Bardo Imortal, como gosto de o chamar, por passadismo e ser passadão.
Vejam vocês, já é matéria de editorial de jornal, logo abaixo da mais recente passeata de justo protesto estudantil, o aniversário de sua publicação em 1611 – 2 de maio, para ser preciso, começa a ser comemorado. Quer dizer, seis semanas ou mais de 5 meses antes do quarto centenário do lançamento. Prematuridade britânica? Não creio.
Festinhas para o instrumento – e livro, principalmente a Bíblia, é instrumento – que ajudou a lançar as bases da língua hoje falada aqui e no mundo inteiro. Já houve festa com a presença do duque de Edimburgo (sim, eles trabalham, gente), e na quinta-feira passada, na cidade de Preston, teve início uma leitura constante e total – espécie de “bibliotona”, se o neologismo não for heresia – da versão em pauta.
Até mesmo ateus confirmados, defensores da “inveracidade” total da Bíblia, como o agora popular em mais de um continente Richard Dawkins, participam alegremente das festividades. Pois festividade é ganhar assim e assim ter para a vida inteira o trabalhão iniciado em 1604 e terminado em 1611 pela Igreja Anglicana.
Na verdade, tratava-se da terceira versão em inglês do volume, mas tão cativante era e é essa versão que virou, não sem motivo, autorizada e até hoje adotada. Para termos uma ideia, em quatro séculos foram, no mínimo, 2,5 bilhões de exemplares postos em circulação preservando e honrando a língua inglesa. Mais até talvez do que Paulo Coelho e Chico Buarque de Holanda juntos.
A Versão Autorizada a quem louvo, e quase, quase me ajoelho diante, contribuiu com nada mais nada menos que 257 frases até hoje em uso. Parece até que há um jabuti lá disputando um prêmio e uma discussão em torno de leite derramado.
Não há cidadão britânico ou publicação que não deva algo à iniciativa que ganhou o nome do rei Jaime.
Em português, do Brasil e de Portugal, a versão tida como um marco equivalente é de João Ferreira de Almeida, a primeira tradução do Novo Testamento a partir das línguas originais. Era protestante, o Ferreira de Almeida, que levou dez anos revisando sua versão, só publicada após sua morte em 1693.
Estudiosos encontraram, dizem lá eles, nunca conferi, 1.119 erros de tradução. Com a “reforma ortográfica” como é que ficam as coisas, pergunto, a cabeça baixa e coberta de cinzas? Inclusive, e principalmente, a versão (estão lá em casa os sete volumes de 1821; aceito ofertas) do padre católico português António Pereira de Figueiredo, baseada na Vulgata e que levou 18 anos para ser completada. Fato e facto tornado possível devido ao fim dos trabalhos formais da Inquisição (vade retro).
As comemorações vêm aí? Já vieram e passaram? Com que “acordo ortográfico” devo me informar?
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* Colunista da BBC Brasil

Fonte: BBC Brasil, 29/11/2010

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