quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Laicidade e secularidade

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES*

Hoje, tanto a palavra da Igreja, como a ação dos cidadãos que professem sua fé, não raro, contrastam com a postura do Estado laico, que se concebe como agente de uma sociedade pluralista. É conveniente que assim ocorra? Este conflito caracterizaria um sinal da justa autonomia da esfera civil e política, de uma saudável laicidade e secularidade, plenamente aceitáveis sob o ângulo da própria Igreja inclusive?
Do ponto de vista eclesial, este embate constitui a expressão daquilo que a Igreja considera, dentro de seu magistério, uma verdade teológica: a condição débil do homem e do mundo e a missão de testemunha da verdade que lhe foi atribuída, devendo atuar, por si e por seus fiéis, com respeito às normas instituídas e à lógica pluralista da cidade terrena. Afinal, mentalidade de partido único é coisa de comunista...
O Estado, por sua vez, propõe um ethos de paz, de igualdade e de liberdade, típico da concepção moderna do constitucionalismo que, somados à sua laicidade e secularidade, constituem valores que, penso, não podem ser mais suprimidos num eventual influxo cristianizador da sociedade.
Eles serão o dique seguro para evitar que a sociedade transborde à tentação, como no passado histórico, de unir de novo a religião com a força coativa estatal. Os resultados, sabemos, não foram positivos: obscurecimento da liberdade individual, do pluralismo social e o advento de abusos institucionais de ambos os lados.
Com efeito, estimo ser necessária uma nova laicidade, não no sentido confessional e antipluralista, mas sob a perspectiva dos ditames do Direito Natural, deste rol de valores perenes e imutáveis que são capazes de edificar uma ordem legal e social mais congruente com a dignidade da pessoa humana e do bem comum.
A resultante desta nova laicidade não será um Estado religioso, como se vê na cultura islâmica, que concebe a si mesma com um projeto políticorreligioso unitário, vincula as instituições legais e políticas à uma teologia baseada no livro sagrado e revelado e ainda conta com tribunais compostos por juízes-teólogos, os quais utilizam um conjunto de leis civis religiosamente interpretado.
Talvez, por isso, os defensores da versão mais radical da laicidade, o laicismo, que visa à expulsão de toda influência religiosa da esfera pública, contemplem estas linhas com alguma inquietação, como uma espécie de pesadelo, e intentem criticá-las. Muito coerente com aquilo que professam e, ao fim, comprova que o conflito constantemente presente entre a Igreja e o Estado resulta inevitável e necessário.
Procurar soluções institucionais límpidas e perfeitas, típicas de cartilhas revolucionárias de ideologias fracassadas, para a superação deste dilema, parece-me uma utopia, porque se trata de um efeito inevitável da índole das realidades terrenas, as quais, legitimamente, requerem sua própria autonomia de ser. No que se refere ao poder político, demandam a laicidade: uma independência institucional e jurídica de toda imposição que, em nome de uma verdade, provenha de qualquer instância religiosa.
Na medida em que o Direito Natural compõe uma parte da racionalidade argumentativa reconhecida publicamente e considerada legítima para a análise crítica da tomada de decisões políticas que reforcem a força coercitiva do Estado, compete à Igreja recordar as exigências temporais que julgar importantes para a formação das consciências dos cidadãos e dos homens públicos, sempre com respeito à autonomia institucional e jurídica dos processos políticos.
Certamente, numa democracia moderna, esta influência constitui um autêntico poder, não coercitivo, mas moral, que somente pode ser negado por um Estado que queira erigir-se em fonte última de valor, retidão e justiça, por absolutizar a relatividade e a disponibilidade política de todos os valores e não tolerar junto de si qualquer voz capaz de questionar sua pretensão.
Esta nova laicidade deve, por um lado, reconhecer o devido lugar ao fenômeno religioso e à sua lei moral e, por outro, afirmar e respeitar a legítima autonomia das realidades terrenas. Em suma, deve estabelecer as regras do jogo, mas não estabelecer o resultado final deste jogo.
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*André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré.

Fonte: Correio Popular online, 17/11/2010
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