terça-feira, 23 de novembro de 2010

Quo vadis quantitative easing?

Antonio Delfim Netto*
Imagem da Internet

Quando observamos o panorama mundial, não podemos deixar de lamentar o estado atual do conhecimento dos economistas sobre o real funcionamento do sistema econômico e sobre o comportamento dos seus agentes. Ele, que deveria ser o objeto de um profundo escrutínio empírico de uma realidade histórica dinâmica, e a subsequente tentativa de descoberta de algumas relações estáveis (se existissem!), perdeu-se lentamente desde a segunda metade do século XIX. Foi transformado de "political economy" em "economics", numa clara tentativa de aproximá-lo da "physics" ou "chemistry" e dar-lhe o cobiçado estatuto de "ciência".
Apenas um exemplo para mostrar essa realidade. A não ser uma fortuita referência a algumas "teorias" (melhor dito, "hipóteses abstratas"), não existe qualquer evidência empírica robusta de que o "quantitative easing", por si mesmo, possa resolver o problema dos EUA.
Nada melhor para ilustrar o problema do que a leitura de um artigo do próprio chairman do Fed, o competente acadêmico Ben S. Bernanke (Bernanke, B.S., Reinhart, V.R., "Conducting Monetary Policy at Very Low Short-Term Interest Rates", "The American Economic Review", 94(2), May 2004: 85-90). Nele se afirma: "Na maioria das vezes, a política monetária trabalha para influenciar os preços e os retornos dos ativos financeiros que, por sua vez, afetam as decisões econômicas e, através delas, toda a economia. Quando a taxa de juros de curto prazo está próxima de zero, os mecanismos convencionais de aumentar a liquidez (reduzir a taxa básica) não funcionam. É um erro, contudo, pensar que a política monetária é impotente. Discutiremos aqui três estratégias para estimular a economia nesse nível da taxa básica. Elas envolvem:
1) dar garantias aos investidores de que o juro básico será mantido baixo no futuro por um período maior do que eles esperam;
2) modificar a oferta relativa de títulos no mercado através de alteração da composição do portfólio do banco central; e
3) ampliar o balanço do banco central para além do necessário para manter a taxa de juro básica no nível zero (quantitative easing)".

"A sociedade americana
perdeu a confiança
nas suas lideranças"

O artigo é um brilhante exercício de lógica a partir de hipóteses ousadas. A primeira condição depende da "credibilidade" do banco central, que é um conceito pelo menos ambíguo. A segunda depende de "evidência empírica limitada" (como os próprios autores confessam). Quanto à terceira, o artigo informa que o "afrouxamento monetário ("quantitative easing") pode afetar a economia por vários mecanismos de transmissão. Em particular, se a moeda for um substituto imperfeito dos ativos financeiros, grandes aumentos da oferta monetária levarão os investidores a procurar rebalancear seus portfólios, aumentando os preços e reduzindo a taxa de retorno de ativos alternativos (não moeda, bens de capital, bens duráveis, imóveis etc.). Por sua vez, a redução das taxas de retorno dos ativos monetários estimulará a atividade econômica (o famoso "efeito Tobin").
Aqui o assunto fica mais nebuloso. "A possibilidade que a política monetária funcione através do efeito-substituição nos portfólios, mesmo em tempos normais, tem uma longa história intelectual, tendo sido exposta tanto por keynesianos (Tobin, 1969) como monetaristas (Brunner e Meltzer, 1973)". E, nos assustamos com esta suprema delícia da Disneylândia: "Recentemente, Javier Andres et al. (2003) mostram que esses efeitos podem funcionar num modelo de equilíbrio geral, com agentes otimizadores". Bernanke continua fiel às suas ideias. Não surpreendeu ninguém. Sua lógica é tão poderosa, que dominou o Fed e o seu comitê de política monetária. Por outro lado, seu suporte empírico continua pífio e a sua estratégia duvidosa. Vai funcionar? Há controvérsia!
Estabeleceu-se uma discussão pública sobre o problema, onde cada interlocutor (acadêmico ou analista) revela, em grau variável, sua familiaridade (com "teorias" e "fatos") e sua inclinação ideológica. No dia 15 de novembro foi divulgada uma "Carta Aberta a Ben Bernanke" assinada por 23 economistas (alguns, artilheiros pesados), onde se afirma que o Fed deve: 1) abandonar o relaxamento monetário ("quantitative easing"), porque ele pode 2) desvalorizar o dólar e aumentar a inflação, sem 3) promover o aumento do emprego. E recomendam: a "precedência do aperfeiçoamento na tributação, nas despesas e nas políticas regulatórias que acelerarão o crescimento econômico".
Nos últimos dias, o "The Wall Street Journal" tem abrigado dezenas de artigos com evidentes manifestações ideológicas pró e contra a política do Fed (personalizada em Bernanke). Muito calor, mas pouca luz! Se a política do Fed tem pouco suporte empírico, a dos seus detratores não é muito melhor.
Como temos insistido, os EUA têm sim um grave problema: a sociedade perdeu a confiança nas suas lideranças. As dificuldades monetárias são apenas a aparência. A ineficácia da política monetária não está em si mesma, mas no fato trágico que, tendo renda, crédito barato e recursos em caixa, os consumidores se recusam a consumir por medo do desemprego e os investidores se recusam a investir porque não veem a demanda futura. Sem a reconquista da "confiança", o circuito econômico não se restabelecerá. Quando isso acontecer, o Fed vai descobrir que "quem paga os pecados do domingo é a segunda-feira"...
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico online, 23/11/2010

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