quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Waldir Quadros - Entrevista

Afinal, quem é a nova classe média?


"Os setores mais conservadores, de direita, parte da classe média, estão irritados com essa mudança na estrutura social. Se esse mal-estar não for bem trabalhado, esses setores acabam indo para a direita e passam a se colocar contra os grupos mais frágeis, como os nordestinos", afirma Waldir Quadros, economista e pesquisador da CESIT/Unicamp, em entrevista publicada pela página eletrônica do SINPRO-SP.

Eis a entrevista.

Professor, para que a gente possa entender como é dividida a população brasileira, de que forma são estabelecidos os critérios e medições tradicionais para definir e classificar famílias em classes ou estratos sociais?
Não existe uma divisão única, aceita por todos os economistas e sociólogos. O que a gente tem são metodologias diferentes que atingem a diferentes interesses e necessidades. [O economista da Fundação Getúlio Vargas] Marcelo Neri, por exemplo, determina as classes por estatística, faz uma média, encontra os valores aproximados que corresponderiam à chamada classe média. Esse método é mais fácil de aplicar – e até de se fazer entender – porque é matemática, é a média estatística. De acordo com uma pesquisa liderada por Neri, entre 2004 e 2008, a classe média cresceu no Brasil. Já representa mais da metade da população economicamente ativa. No período, o número de famílias nesta categoria subiu de 42,26% para 51,89%. Eu uso outro método, com um enfoque mais sociológico.

Primeiro o senhor observa a ocupação, algo como a profissão. É isso?
Isso. Por definição teórica e por sensibilidade para a situação brasileira, podemos afirmar que determinadas ocupações (que refletem a escolarização, o padrão de vida) são típicas de cada camada social. Assim, já que estamos falando com professores, um professor do ensino superior representa a alta classe média. Junto com ele estão os médicos, os juízes, advogados, engenheiros etc. Um professor de ensino médio se aproxima mais da média classe média. Quem mais está nesse estrato? Os funcionários públicos de nível médio, prestadores de serviços não qualificados, e outros. O professor de ensino fundamental estaria na baixa classe média, ao lado das balconistas, dos carteiros. Para baixo dessas três camadas, ainda temos a massa trabalhadora e, por fim, os miseráveis.

Mas até agora não falamos de renda.
Exatamente. Agora é que entra a renda, como uma peneira com orifícios bem ajustados para, digamos assim, pescar quem é alta classe média, quem é massa trabalhadora, baixa classe média e por aí vai. Nossas observações se baseiam nos dados divulgados pela PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios), que indicam:
alta classe média é quem ganha acima de R$ 3.500; a média classe média ganha entre R$ 1.750 e R$ 3.500; a classe média baixa recebe de R$ 700 a R$ 1.750;
a massa trabalhadora vive com ganhos de R$ 350 a R$ 700; e
os miseráveis têm renda abaixo de R$ 350.
Esses números, evidentemente, não correspondem à renda real, trata-se da renda declarada e as pessoas podem não contar a verdade para o pesquisador do PNAD. Mas ela é amostral e ajuda a estratificar. Vou dar um exemplo para ajudar: um morador do Morumbi, bairro de classe média alta de São Paulo, nunca vai dizer para o pesquisador que ganha 40 mil por mês. Ele diz 10 mil. E essa informação já ajuda a separá-lo, e o grupo a que ele pertence, do morador de Pirituba, que declara receber 500. Os dois podem não estar dizendo a verdade por medo do vazamento desses dados, mas já mostram diferenças de classes. Quem chamou nossa atenção para isso foram os próprios pesquisadores do PNAD.
"...é muito difícil estratificar
 a sociedade pelo consumo e
 importa entender que o consumo
não muda a estrutura social."



O senhor cruza os dados e chega a faixas de renda e de ocupação e assim consegue acomodar as pessoas em classes diferenciadas. E por que é importante olhar para outros fatores que não só o dinheiro, professor?
Porque só assim a gente consegue abraçar todos os lados, inclusive os mais sorrateiros. A crise econômica que o Brasil viveu desde os anos 1990 teve como uma das mais importantes consequências a precarização das ocupações. Muitas profissões foram minadas por dentro e perderam espaço, valor e até renda. Já a renda está ligada diretamente à qualidade de vida, ao padrão de vida: como a pessoa mora, se tem esgoto, se tem energia elétrica e tal. Com essas duas variáveis a gente tem uma visão bem ampla.

O consumo entra onde?
Essa é uma terceira variável que a gente ainda não tinha falado. O poder de consumo é muito importante nessa análise, mas a gente tem de saber olhar para ele. Embora mostre a força do poder aquisitivo do cidadão, o consumo é muito enganador. Pessoas de alta classe média, ou de baixa classe média, podem ter o mesmo aparelho de celular. Mas a primeira paga a vista. A segunda, parcela. Ou se endivida. Traduzindo, é muito difícil estratificar a sociedade pelo consumo e importa entender que o consumo não muda a estrutura social.

Quer dizer que comprar mais frango, iogurte, aparelho de TV ou celular não afeta a estrutura social?
Não. Faz a economia rodar, aumenta a circulação de dinheiro, melhora o bem-estar e o conforto das pessoas, mas o que faz uma família ascender não é o poder de compra, e sim galgar posições em relação à ocupação e à renda.

Nos últimos anos discutiu-se muito a formação de uma nova classe média no Brasil. Como se dá atualmente a distribuição por classes no país e quais são os detalhes dessa ascensão social, ou seja, de qual fenômeno mais especificamente falamos?
Entre a população economicamente ativa, 22,7 milhões de brasileiros ascenderam socialmente. Desse total, 35% passaram de miserável para a massa trabalhadora; 46% chegaram à classe média baixa. Outros 15% foram para classe média média e 5% foram parar na classe média alta. Contando a mesma história de outro jeito: 61% dos miseráveis ascenderam; 45,5% da massa trabalhadora subiram; e apenas 14,5% da classe média baixa e da e da classe média média pularam de patamar. O que significa isso? De 2003, 2004 para cá, acompanhamos um dinamismo social muito grande, com grande destaque para os fenômenos ocorridos na base da pirâmide, entre os miseráveis e a massa trabalhadora. Eu preciso dizer que números assim representam cenário muito raro, a gente não vê casos assim frequentemente. Tudo indica que o Brasil está retomando um caminho que foi interrompido no início dos anos 1980. Outra informação importante é que, se houve essa movimentação social, é porque a situação de origem estava muito, muito ruim.

Chama a atenção também que a as camadas mais altas não cresceram no mesmo ritmo das mais baixas. Por que isso acontece?
Essa resposta é onde nossas pesquisas estão mais debruçadas. Já temos algumas hipóteses. Uma delas é que o desenvolvimento econômico que estamos acompanhando ainda não atingiu questões estruturais. Ou seja, de 1981 até 2004 mais ou menos, o Brasil passou por uma desindustrialização importante, e os serviços mais qualificados, que atendem à indústria, que são ligados à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico, também não avançaram como precisam. São essas duas frentes que puxam as classes mais elevadas.

O senhor explicou que os avanços, embora reais, foram conjunturais até agora, ainda não são estruturais. Existe uma possibilidade real de o país cruzar essa ponte, professor?
Existe sim. Todas as condições, inclusive as históricas, estão dadas. Internacionalmente, internamente. Está tudo posto. Eu brinco que é preciso ter juízo. Se tiver, pode acontecer sim em 10 ou 20 anos. Parece muito com a situação da Coreia do Sul depois da 2ª Guerra Mundial. As condições estão muito favoráveis e acho que nenhum governante vai querer perder essa oportunidade. Me parece que a vertente que ganhou as eleições presidenciais tem uma situação mais promissora para atravessar esse caminho. Internamente ainda temos o pré-sal, que traz possibilidades gigantescas, e o agronegócio brasileiro, que ocupa um espaço relevante na economia global. É esse projeto de Estado que ampara o crescimento da economia que se afina melhor com o incentivo à industrialização, com o crescimento dos serviços qualificados, a abertura de vagas para funcionários públicos gabaritados, o investimento em ciência, tecnologia e desenvolvimento.

O senhor citou a Coreia do Sul, um país que mudou radicalmente. Se o Brasil continuar tirando as pessoas da miséria e da pobreza, o país também vai mudar radicalmente. Nossa ideia de o que é o país, quem são os brasileiros... não há estranhamentos?
Aí você tocou talvez no ponto mais importante. Vai mudar tudo mesmo. Nossa sociedade está estruturada há 500 anos na desigualdade social profunda. E isso está mudando. Vai ser preciso uma revolução cultural, do bem, não como a do Mao Tsé Tung na China, mas uma outra, nossa, do bem, para ir orientando a percepção das pessoas. Porque se não, acontecem manifestações como as que já estamos assistindo.

O senhor está se referindo por exemplo às manifestações discriminatórias contra os nordestinos?
Os setores mais conservadores, de direita, parte da classe média, estão irritados com essa mudança na estrutura social. Se esse mal-estar não for bem trabalhado, esses setores acabam indo para a direita e passam a se colocar contra os grupos mais frágeis, como os nordestinos. Qual é a saída? A intelectualidade, os formadores de opinião respeitados por esses setores virem a público para discutir a questão, trabalhar essas ideias e fazer a mentalidade avançar no mesmo ritmo da economia. Se não fica bem ruim. Esse é um problema social que vem junto com o crescimento econômico e a ascensão das camadas mais baixas. Mas é o que eu chamo de um problema.

Por que, professor?
Porque permite pensar nas boas soluções. Se a classe média não acha mais babá, então será preciso criar mais creches, implantar a escola em tempo integral, aumentar a licença maternidade, enfim, criar e implantar políticas públicas que atendam a nova realidade. Uma realidade mais justa. Mas tudo isso se o Brasil tiver juízo.
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Fonte: IHU online, 24/11/2010

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