quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

5, 4, 3, 2, 1… Desativar humanos

Tecnologia

Começou a contagem regressiva para 2045, o ano em que robôs capazes de tomar decisões por conta própria dominarão o mundo. Preparar-nos para esse momento é a missão da Universidade da Singularidade, onde cientistas aliados a empresários bilionários investem na formação de uma nova elite planetária
Na varanda de uma mansão à beira do Oceano Pacífico, em uma das áreas mais sofisticadas de São Francisco, um mago anão de largas barbas brancas conversa com um homem de óculos cuja roupa parece um computador — o assunto é uma professora que provou que seu papagaio pensava. Freakolândia? Nada disso. O primeiro sujeito é James Randi, o mágico que desmascarou o vidente Uri Geller, uma espécie de superpadre Quevedo dos anos 70; o segundo é o inventor Steve Mann, conhecido como o “primeiro ciborgue” por seu trabalho com câmeras adaptáveis ao corpo; a professora é Irene Pepperberg, autoridade de Harvard em cognição animal. Ali por perto há uma biblioteca com o alfabeto essencial dos mestres da ficção científica: Isaac Asimov, J.G. Ballard, Arthur C. Clarke. Do terraço, o olhar se perde em uma vista magnífica do Exploratorium, o museu de ciências onde Kim Novak e James Stewart passearam para as lentes de Alfred Hitchcock em Um Corpo Que Cai. Dispersos pelos três andares da residência, papeando e bebendo champanhe, esquisitões multidiplomados se misturam a homens de turbante, nerds entusiasmados e milionários californianos — entre eles está ninguém menos que Larry Page, fundador do Google. O dono da mansão é Peter Thiel, criador do PayPal, empresa pioneira na transferência financeira pela internet e um dos primeiros investidores do Facebook. Tudo parece fantasioso. Mas está acontecendo. Aqui, agora.
Presenciei essa cena na festa de abertura do segundo ano letivo da Universidade da Singularidade (Singularity University, ou SU), como um dos 120 alunos inscritos no último curso de verão. Os empresários Page e Thiel fazem parte da relação de notáveis que sustentam a escola. A SU está sediada no Ames Research Center, da Nasa, no Vale do Silício. Em dez semanas, ficamos preocupados com as grandes questões do planeta— miséria, fome, doenças fatais, aquecimento global, economia energética —, tendo aulas de biotecnologia, nanotecnologia, inteligência artificial, robótica, computação cognitiva, mercado de capitais e empreendedorismo. O plano da SU é bombardear os escolhidos com novidades de supertecnologias e armar projetos que “afetem positivamente 1 bilhão de pessoas”, segundo seu lema. O ritmo é intenso, com jornadas de mais de 15 horas. Quando a noite se aproxima, o networking começa e chegam as cervejadas com os luminares convidados: de Vint Cerf, um dos pais da internet, ao super-hacker Richard Stallman, guru do software livre, 165 palestrantes passam pelo curso.
A coisa toda foi baseada na misteriosa causa da Singularidade. Que vem a ser isso? É o momento em que as máquinas vão se tornar tão inteligentes que tomarão o lugar dos homens, segundo Venor Vinge, o papa da ficção científica. A ideia não é nova — o conflito homem versus inteligência artificial já aparecia em 1968 no clássico 2001: uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Porém, foi o inventor americano Ray Kurzweil e sua saga de best-sellers que levaram, nos últimos tempos, a Singularidade a tomar de assalto o cabisbaixo mercado das utopias contemporâneas, desatando o maior hype tecnofuturista desde Carl Sagan e seu evangelho extraterrestre nos anos 80. Quem está à frente da história não é nenhum maluco. Kurzweil, 62 anos, um brilhante ex-aluno do MIT, autor de A Era das Máquinas Espirituais (Aleph), desenvolveu, entre outras inovações, a tecnologia de reconhecimento óptico de caracteres que deu origem aos modernos escâneres e projetou os primeiros sintetizadores de piano e de voz. Sua causa da Singularidade ganhou ainda mais credibilidade quando instituições como Google, Yahoo! e Nasa apoiaram, em 2009, a fundação de uma escola que ensina a lidar com uma realidade em que a tecnologia é muito mais esperta que os seres humanos.
No dia seguinte à festa de abertura do curso de verão da Universidade da Singularidade, saímos de São Francisco pela Rota 101, a artéria que corta as cidadezinhas do Vale do Silício, em direção ao campus. Há 40 anos, nesse deserto eram cultivados morangos e cerejas. Era o chamado Vale do Coração do Prazer; nas últimas décadas, a região trocou frutas por chips e hoje produz o equivalente ao PIB de um país europeu. A minutos do quartel-general do Google, em Mountain View, estão as instalações militares do Ames Research Center, da Nasa, onde funciona a SU, fundada em 2009 por Kurzweil, Salim Ismail e Peter Diamandis. Ismail largou a presidência do Yahoo! para dirigir a SU. E Diamandis é conhecido como o presidente da X-Prize Foundation, que em 2004 deu 10 milhões de dólares à empresa que havia criado a primeira nave espacial para turistas.
Na cerimônia de inauguração do curso de verão, ouvimos uma palestra de um entusiasmado Larry Page. “Aqui é onde eu gostaria de estar se fosse estudante”, disse o fundador do Google. No sonho americano tecnológico, suas palavras soaram como uma missão: mudar o mundo com um aplicativo poderoso em tempos de capitalismo sustentável. Page não fica só no discurso. Doou 250 000 dólares à SU, e alguns diretores do Google repassaram cheques de 100 000 dólares para inscrever seus nomes entre os beneméritos da causa transumanista. A empresa, cujo valor de mercado é 43 bilhões de dólares, planeja ampliar as instalações da SU com um novo campus ao lado do Ames Research Center. Nos anos 50, as instalações do Ames abrigavam um famoso centro de pesquisas da Nasa. Hoje, o endereço é uma espécie de shopping tecnológico, loteado por universidades (como a SU), corporações e incubadoras de negócios de tecnologia. No hangar que domina a paisagem, Larry Page e seu sócio Sergey Brin estacionam seus jatinhos particulares.
A ambição da SU é muito maior do que aparenta. O reitor Kurzweil propõe um futuro transumanista, em que uma inteligência artificial se imporá como dominante. Fala — a sério — sobre conquistar a imortalidade: a alma poderá ser “subida” num computador, assim como um software é baixado em um novo hardware. Nesse momento, que segundo Kurzweil se dará até 2045, ocorrerá a Singularidade — o instante em que a aceleração tecnológica ultrapassará a capacidade computacional do cérebro humano. Na SU também se aprende como os humanos podem se proteger das poderosas inteligências artificiais que nos substituirão. Para Kurzweil, a Singularidade trará conseqüências otimistas: derrotaremos a pobreza; o mundo será pura abundância; não haverá doenças; viveremos para sempre… Os seguidores de Kurzweil não param de crescer. A Vingança dos Nerds teria um líder religioso? A tecnologia virou crença?
No curso que frequentei no verão, percebi que a regra ali é ser idealista e ambicioso sem abandonar o racionalismo e o pragmatismo. Um dos meus colegas era Dhaval Chadha, um arrojado indiano de 24 anos nascido em Nova Délhi e criado no Rio de Janeiro. Ele chegou ao Brasil ainda criança e ficou chocado com a miséria nas ruas. Formado em Harvard, seus interesses profissionais estão relacionados hoje a combater esse problema. “Me interessam os 2 bilhões de pessoas mais pobres do planeta; dos outros não quero saber”, disse-me ele. Dhaval trabalhou no Rio como estrategista do Comitê da Democratização da Informática (CDI), ONG dedicada à inclusão digital de comunidades carentes, e hoje dirige uma incubadora de negócios ligados a sustentabilidade.
Além da preocupação com as causas sociais, os estudantes estão ligados à criação de engenhocas futuristas. Entre meus colegas havia o israelense Erez Livneh, que desenvolve tecnologias para levar combustível à estratosfera, e a australiana Sara Jane Pell, especialista em desenhar interiores inteligentes para o primeiro hotel no espaço. Outro brasileiro, o carioca Fábio Teixeira, ganhou uma bolsa com uma aplicação que simplesmente simulava como resolver o trânsito da cidade de São Paulo. “Aqui ninguém te olha esquisito se você tem ideias loucas!”, afirmou Fábio. Conversando com os estudantes, tomo contato com outros projetos nada convencionais: como alimentar as cidades daqui a 50 anos, prover água limpa a baixo custo a milhões mediante nanotecnologia, reciclar cobre de equipamentos eletrônicos usando microrganismos, revolucionar os negócios aeroespaciais com projetos de telepresença, construir minissatélites inteligentes, lançar laboratórios siderais…

 “Não creio que quando
chegar a Singularidade
 alguém queira ser conhecido

como um ser humano que
detesta computadores.
É prudente não aparentar
ser tecnófobo”.
(O empresário Peter Thiel )
Do outro lado dos Estados Unidos, mais especificamente na redação do The New York Times, a Singularidade foi retratada como “uma religião de nerds ricos surgida em uma cultura de engenheiros”. Na mesma época do Summit, a principal semana de conferências da SU, uma longa reportagem do jornal usava a principal arma de convencimento de Kurzweil — a Lei de Moore — para refrear a animação transumanista. A Lei de Moore, surgida nos anos 50, afirma que, a cada seis meses, um chip diminui de tamanho pela metade. Esse crescimento exponencial é a base da crença na aceleração tecnológica que levaria à Singularidade. No NYT, o físico Jonathan Huebner afirma o contrário: a quantidade de avanço científico no século 21 não superará a do século 20. Portanto, o surgimento de inteligências artificiais, como crê Kurzweil, seria impossível. O jornal cita outro estudioso da teoria exponencial, William S. Bainbridge, da National Science Foundation, também cético: “Não se podem ver resultados exponenciais nas elevações da capacidade computacional — simplesmente porque não se devem fazer extrapolações simplistas com base no que aconteceu no passado”, afirmou Bainbridge.
Críticas como a do New York Times não abalam em nada a fé dos adeptos de Kurzweil. “Não entende, Pola?”, me cutuca o programador romeno Alex Celac. “Jesus Cristo teve 33 anos nesta Terra e não acreditaram nele!”, se exasperou o estudante, que vendeu todos os bens para ir à universidade. “Rompi com o mundo. Não queria ter algo para onde voltar, queria me comprometer totalmente com isso”, me explica. “Este é o Vaticano da tecnologia, e todos sabemos que haverá uma guerra entre humanos e inteligências artificiais. Amanhã, na conferência, Kurzweil vai aparecer em forma de holograma. Vai ser incrível!”
São Francisco, 9 da manhã. Nervosos, esperamos o show de Kurzweil e Seus Hologramas. O auditório estala de seguidores: a maioria, engenheiros entre 30 e 40 anos. Kurzweil surge falando de seu novo livro, How the Mind Works and How to Build One (“Como a mente trabalha e como construir uma”). O título não é nenhuma brincadeira. Kurzweil planeja em 2020 modelar um cérebro digital com a ajuda de nanorrobôs. Em determinado momento, ele menciona seus críticos com ironia. O público sorri, cúmplice. Estou sentada junto a um agente da inteligência militar americana que digita no iPhone a toda velocidade. Me pergunta se encontrei bom material. Respondo que sim, mas que a ideia de seita é tão atraente para a imprensa que não é fácil desarmá-la! “As pessoas também não acreditavam em Galileu!”, devolve-me o agente. Não se pode negar que Kurzweil tem talento para ser comparado com celebridades da ciência.
À saída encontro Ed, um programador quarentão meio infantil, que me afirma: “A guerra entre a humanidade e as inteligências artificiais será evitada se nos certificarmos de que as máquinas do futuro terão os nossos valores”. Inútil dizer a ele que os nossos valores nunca nos garantiram nada… Na melhor tradição científica, a SU cultiva o sentimento de superioridade. Se outras pessoas “não acreditam”, é porque não entendem: se não entendem, é porque são burras. Os transumanistas intuem que, quando as máquinas inteligentes dominarem o Pentágono, os humanos que não estiverem preparados correm o risco de virar os mexicanos da Nova Ordem. Em sua palestra, o empresário Peter Thiel alertou: “Não creio que quando chegar a Singularidade alguém queira ser conhecido como um ser humano que detesta computadores. É prudente não aparentar ser tecnófobo”.
No dia seguinte, Ray Kurzweil recebeu xeques (e cheques) de um fundo de investimento de Abu Dhabi que controla 1 trilhão de dólares. O tempo dirá se a Universidade da Singularidade se converterá na Harvard Business School do futuro, com o melhor networking do Vale do Silício e um olho especial para a inovação. No momento, os projetos dos estudantes são promissores. Ideias meio loucas, sim. Mas que demonstram: pensar grande voltou à moda. Na dúvida sobre como entender esses poderosos sonhadores, é conveniente se espelhar no comportamento do HAL-9000, a inteligência artificial de 2001: fique de olho.
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Reportagem por Pola Oloixarac, de São Francisco

Fonte: Revista ALFA online, 19/11/2010

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