quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A política da não política

 Roberto Damatta*

Seria possível viver sem política? Haveria alguma situação humana sem necessidade de decisão e, portanto, de politizar? De escolher e inventar destinos?
Só nos intervalos, nos entreatos, nas pausas e na plenitude das grandes passagens - quando o mundo fica suspenso entre alguma coisa que vai chegar, mas ainda não está presente - surge o não político, o que não pode ser falado. Só aí o jogo é interrompido. A política do jogo ou o jogo como político continua, mas deve ser visto como um "não jogo". Fica como aquelas fases pré-vestibulares, quando a expectativa é maior do que o exame. Na preparação de uma peça ocorre o mesmo. O texto está pronto, mas a produção requer um duro encontro entre os atores e os papéis a serem representados. Nos ensaios, vive-se um momento crítico de representações que não são representações, mas experimentos. Não se pode negar que não exista teatro nos ensaios, mas não se pode afirmar ou confundir o ensaio com a peça. Nesses casos, surge o humano do humano: o ser e o não ser; o papel sem ator e o ator sem papel. Nascimentos e mortes, seguidas de renascimentos e ressurreições.

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Assistir a um ensaio é testemunhar, como está acontecendo agora no Brasil, a política da não política. Há muita politicagem, mas tudo ocorre em nome de uma não política. Predomina o silêncio dos fracos e não o grito dos poderosos. Estão todos "tapados", como o caso mexicano exprimia de modo nítido. A peça só vira espetáculo quando a cortina é solenemente aberta.

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Estamos nessa fase. Temos os papéis, temos a presidente eleita e o presidente que vai sair de cena, mas a peça ainda não está pronta. E como há teatro na política, mas política não é teatro, pois nela não há ensaio e os custos são impagáveis; temos o preocupante não saber como os atores vão viver esses papéis. Revela-se em toda a sua nudez de corista os bastidores da peça a ser montada pelo governo da presidente Dilma. Olhar o não político no político mostra o lado pessoal e relacional da vida palaciana. Nada mais complicado que escolher, num universo de coalizão, um mundo onde se deseja tudo, menos ter o que se foi: oposição. Ademais, quem escolhe: o Lula (que, me fez) ou eu (que devo me fazer)? Fico com o PT ou com o PMDB que imagina ser o partido da modernidade política nacional? Convoco aquele canalha ou fico com este conhecido canastrão porque, afinal, ele me foi indicado por X que, sendo amigo de Z do partido N, tem influência junto a F que pode ser útil justamente porque é de uma teórica oposição?

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Sobre os canastrões pairam as dúvidas de sempre. Mas mesmo sobre o diretor-ator principal da peça - a presidente eleita - cabem incertezas porque até hoje ninguém sabe se o teatro imita a vida ou se a vida imita o teatro. Sem ensaio, ninguém pode dizer como a pessoa vai se sair no papel (e o papel na pessoa). Se os dois vão se juntar como a luva branca na mão do mordomo inglês ou se o ator presidente vai usar luvas de boxe. Já vivemos os dois casos. Sabemos, porém, que todo palhaço usa botinas maiores do que os seus pés, o que acentua a ambiguidade que conduz ao riso e a comiseração. Quem não riu e chorou com Carlitos? Ou com os presidentes que iam liquidar de uma vez por todas a corrupção nacional e, no curso da peça, revelaram-se larápios dignos de um Oscar?

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Esse momento sem política revela os bastidores da politicagem. Primeiro a luta por um partido do Brasil, algo impossível numa sociedade democrática, liberal e igualitária. Impossível porque isso seria equivalente a ter uma única marca representando toda uma indústria ou um time englobando todo um esporte. Como ser o melhor e o mais eficiente, se não existe o mais ineficiente?
A disputa relacional, a conta de chegar entre princípios e pessoas anunciam a peça a ser vista. Pagamos pela sua qualidade de tragédia ou farsa. Pagamos pelos artistas e pelo teatro. Aliás, somos nós - os cidadãos comuns - esse "povo" com ou sem Deus que segura todos os espetáculos deste mundo. Dos enterros anônimos aos funerais faraônicos; das escolhas baseadas na competência dos atores e das que pagam um favor ou se cumpre um requisito formal de apoio de modo que lá vai um canalha para o papel de ministro o qual, diga-se de passagem, vai desempenhar com o mesmo rigor de um Procópio Ferreira.

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Pois atores somos todos desde o dia em que, sem convite ou contrato, viemos ao mundo para tomar parte do dramalhão humano. Uma peça que não iniciamos e jamais iremos terminar. Felizes seremos se, dentro dela, pudermos compreender algum entrecho ou cena. Mais gratos ainda, se tivermos a sinceridade para nos havermos bem nos papéis que nos foram confiados e que, no fundo, são muito mais importantes que nós. Afinal, nós todos passamos, mas os papéis ficam - eis a lição que nossos políticos ainda não atinaram. Melhor seria disputar menos e pensar mais nas competências. Quanto mais não seja porque a noção de limite do papel que se disputa. O que, afinal de contas, não é disputado nesse nosso Brasil? Com todas essas claras aspirações autoritárias e um grupo de mandões devidamente entrosados e prontos a enriquecer com o nosso trabalho?
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* Antropólogo. Escritor.
Fonte: Estadão online, 08/12/2010
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