segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Marina Colasanti - entrevista

“O corte na vida se impôs radical, impôs outro país”
Imagem da Internet

Marina Colasanti viveu a intimidade da guerra. Nascida em 1937, em Asmara, capital da Eritréia — então colônia italiana —, ela chegou ao Brasil aos 10 anos. É este período da infância, vivido em terras africanas e italianas, que o recém-lançado livro de memórias Minha guerra alheia percorre com lirismo, humor e esperança. Mesmo no centro da Segunda Guerra Mundial — o pai de Marina era oficial do exército italiano —, o olhar da autora volta-se para o cotidiano, para a vida que segue seu ritmo, apesar do horror que a ronda o tempo todo. “A visão da guerra que nos é constantemente servida pela mídia é constituída por flagrantes de ações, fragmentos, uniformes mimetizados, poeira, explosões. O cotidiano está ausente, não é notícia. Foi dessa ausência que eu quis falar. E o fiz relembrando minha infância ”, diz Marina nesta entrevista concedida por e-mail ao Pernambuco.
Ao afastar-se de uma narrativa óbvia sobre a guerra e suas atrocidades, a autora atesta a força da literatura e dos livros, a capacidade da palavra escrita em buscar entender o caos do mundo. “Lendo livros aprendi o pouco que sei sobre ler a vida”, afirma. Ao fim da leitura de Minha guerra alheia, entende-se perfeitamente por quê. Ganhadora do prêmio Jabuti 2010 na categoria Poesia, com Passageira em trânsito.

Suas memórias em Minha guerra alheia têm um corte preciso: terminam no momento do embarque para o Brasil, quando a senhora tinha 10 anos. Por que a escolha deste período?
Porque o corte na vida foi radical, impôs uma outra língua, um outro país, uma outra realidade. E o fim definitivo da minha guerra que, aqui, havia sido vivida de maneira de fato alheia. Lembro que, no dia da chegada, indo de carro para casa com minha tia — a cantora lírica Gabriella Besanzoni Lage —, passamos diante de uma demolição e eu perguntei se no Rio também tinha havido bombardeios. Os adultos sorriram benévolos e comovidos, nunca mais fiz esse tipo de pergunta.

Minha guerra alheia aborda sua infância e os difíceis tempos da Segunda Guerra Mundial, entre a África e a Itália. Apesar das dificuldades que toda guerra impõe, infiltram-se pelo livro momentos de alegria, humor, amizade. Com isso, a leitura, sem perder em densidade, torna-se leve, agradável. O que a senhora pretendia quando tomou este caminho narrativo?
Nunca pretendi fazer uma exegese da guerra. Desejei mostrá-la pelo ângulo que não nos chega através dos noticiários da TV, o cotidiano. Há dois cotidianos em qualquer guerra, o das tropas, e o dos civis. Mas a visão da guerra que nos é constantemente servida pela mídia não se pousa sobre nenhum dos dois, é constituída por flagrantes de ações, fragmentos, uniformes mimetizados, poeira, explosões. O cotidiano está ausente, não é notícia. Foi dessa ausência que eu quis falar. E o fiz relembrando minha infância, utilizando o olhar atento com que toda criança apreende o seu entorno.

À página 15 de Minha guerra alheia, lê-se que “Não eram de grandes registros, meus pais, não deixaram documentos, datas, escritos. Até mesmo minha certidão de nascimento desapareceu”. Mais adiante: “A memória guarda o que bem entende, que nem sempre é o que se precisa guardar”. Durante a construção do livro, a senhora temeu ser traída pela memória, engolida por ela, e transformar Minha guerra alheia num híbrido entre ficção e memória?
Não. Em momento algum. Minhas lembranças são muito nítidas, seguras. Narrei o que lembro, fatos gravados em mim com grande intensidade, alguns porque foram determinantes, outros porque são parte ativa de toda uma construção. Vale dizer que o próprio período em que ocorreram, um período que sem medo de errar podemos chamar de risco, impunha atenção. Certamente, muitos momentos menores ficaram fora do relato, e outros tantos foram apagados pelo tempo. Mas nunca pretendi fazer um registro absoluto. O que, sim, pretendi a partir do planejamento do livro, foi fazer uma fusão entre memória e reportagem.

Por que a senhora optou pela ausência de fotografias em Minha guerra alheia, já que é comum o uso de imagens em livros de memórias?
Durante o processo de escrita pensei que as usaria, parecia-me quase óbvio que o fizesse. Mas quando o livro ficou pronto, hesitei. Afinal, o que eu tinha em mãos não era um livro apenas de memórias, a memória estava entretecida em algo bem mais amplo. Usar as fotos do meu álbum de família pareceu-me redutor, pois fecharia o foco sobre um registro pessoal, quando o que eu havia buscado era um discurso coletivo. E, afinal, as imagens ausentes estão presentes na narrativa, a descrição das fotografias que decidi não mostrar atravessa todo o livro, a começar pela cena inicial, o casamento dos meus pais. Narrar as fotos é um recurso literário generoso, pois deixa um espaço bem mais amplo e livre para o imaginário do leitor.
"A morte é a experiência mais
avassaladora da vida, é quando nos é
entregue — ou não — a chave do grande mistério.
Mas poucos estão à sua altura,
preparados, de fato,
para recebê-la."


A morte esteve muito presente em sua vida desde a infância, devido à proximidade com a guerra. O poema Antes que, de Passageira em trânsito, diz “Ler um bom poema/ antes que a morte venha/ e escreva o seu”. De que maneira a senhora encara a possibilidade da morte? Ela a assusta, a incomoda?
A morte esteve presente na minha infância não só em função da guerra. Naquele período ela bafejou na minha nuca em duas ocasiões, quando tive meningite, e quando tive um problema pulmonar. Tenho dialogado com ela na literatura e na vida, nem vejo como poderia ser de outro modo, já que temos um encontro marcado e não nos conhecemos. A morte é a experiência mais avassaladora da vida, é quando nos é entregue — ou não — a chave do grande mistério. Mas poucos estão à sua altura, preparados, de fato, para recebê-la.

Ao ler sua obra poética e em prosa, nota-se claramente o seu gosto pela viagem, o prazer que conhecer (ou revisitar) lugares lhe traz. Qual a importância deste deslocar-se para a construção da sua literatura?
Deslocar-me é importante para a construção de mim, e é através de mim que construo a minha literatura. Poderia simplificar dizendo que é um vício adquirido desde a gestação, desde quando, ainda no ventre da minha mãe, mudei pela primeira vez de continente. Entretanto, é muito mais que isso. Viajar é ser o outro plenamente, é o direito absoluto à alteridade. E quando você se torna o outro, todos os seus sentidos se abrem, porque a sobrevivência depende da sua capacidade de observar e apreender — estou falando, é claro, de algo bem além do tour turístico em ônibus com ar refrigerado e guia falando a mesma língua do viajante. Nesse sentido, toda viagem é mítica, rumo à descoberta do outro, que é também a descoberta de si. E todo viajante é um Ulisses, que atravessando o desconhecido e aprendendo com ele, regressa à sua própria casa.

A senhora tem uma palestra, cujo título é Como se fizesse um cavalo, em que narra sua paixão pela leitura e a pessoa que poderia não ter sido se não tivesse lido determinados livros. Pode-se afirmar que a senhora existe, em alguma medida, a partir dos livros que leu?
Certamente. Não desse ou daquele livro, mas do todo, do meu estar sempre debruçada sobre alguma leitura. Não sei quem eu teria sido sem os livros que li. Ou melhor dito, sem os livros que me educaram. Pois foi, sobretudo, através da leitura que a vida se desdobrou para mim em infinitas facetas, infinitas variantes, de uma riqueza e de uma multiplicidade que nenhum cotidiano pode nos oferecer. O grande painel dos sentimentos humanos me foi entregue pela literatura. E também a arte me chegou desde cedo através dos livros, quando eu ainda não conhecia os grandes museus. Lendo livros aprendi o pouco que sei sobre ler a vida.

A senhora acaba de lançar o livro infantojuvenil Classificados e nem tanto, com xilogravuras de Rubem Grilo. Quais as diferenças, dificuldades e preocupações ao escrever para um leitor em formação?
Não me preocupo com isso ao escrever. A formação do leitor me interessa quando penso ou atuo teoricamente, quando me ocupo das questões da leitura. Mas, como escritora, estou voltada para o texto, para a história, não para o leitor. Existe toda uma vertente da literatura infantil, que a considera veículo para ensinamentos. É um vestígio ideológico/educacional do século 19 do qual não nos libertamos até hoje. Eu não pertenço a essa vertente. Parece — e talvez seja — pretensioso mas a minha meta, para leitores de qualquer idade, é fazer literatura.

A senhora acompanha a literatura brasileira contemporânea? O que lhe chama a atenção na atual produção?
Aumentou. Publica-se muito mais hoje do que ontem, e apesar da metódica invasão dos best-sellers estrangeiros, sobretudo americanos, há mais espaço para o autor nacional. Os jovens contam hoje também com o espaço da internet, quer para comunicar entre si e intercambiar trabalhos, quer para dar-se a ver aos olheiros do mercado; um blog interessante, com muita visitação é passaporte de valor.
"O sonho e o cotidiano,
o fato e seu relato são formados
pelos mesmos elementos,
tirados do pouco que conhecemos e
que chamamos vida.
E a realidade de um sempre
será a ficção do outro."

E como é o seu método de criação? Há uma rotina de trabalho?
A palavra rotina é enganadora. Dá logo a impressão de que o que me está sendo perguntado é se eu escrevo todo dia, de que hora a que hora, quando paro para almoçar, e quando para caminhar na praia. Essa rotina de funcionário público, não tenho. Nem poderia. Sou minha secretária, minha administradora, meu mordomo, minha cozinheira, e às vezes até minha costureira. Sou a dona das minhas duas casas. Viajo muito. Mas sou extremamente cumpridora. Minha rotina consiste em determinar, assim que acabo a escrita e a finalização de um livro, qual será o próximo. O novo projeto entra na minha vida no começo do ano. E a domina até estar terminado. Abro espaço físico para ele como Deus é servido. E mantenho sempre aberta a comunicação emocional/intelectual. Se o projeto se prolonga por mais de um ano, tenho dificuldades entre setembro e dezembro, que é quando se fazem mais intensas as solicitações para viagens e palestras. Mas sou um feitor competente e feroz, mantenho mão de ferro sobre meu próprio cangote.

Que poder tem a literatura sobre o indivíduo? Qual a importância da ficção na vida cotidiana das pessoas?
A resposta poderia se alongar enormemente, vou tentar ser bem objetiva: através da literatura o leitor põe em ato algo muito semelhante à análise de grupo. Há, num romance, várias personagens que interagem, delas sabemos o que dizem, o que pensam, e o que sentem; o narrador onisciente se encarrega de nos transportar para dentro de cada uma delas, ao mesmo tempo que nos mostra o conjunto das ações e reações. O leitor é levado a olhar a vida de perto, e por dentro. E nesse olhar executa as transferências, identificando-se com isso ou com aquilo, elaborando seus próprios sentimentos. Quanto à ficção, eu diria que ela não existe, ou melhor, que tudo é ficção. O sonho e o cotidiano, o fato e seu relato são formados pelos mesmos elementos, tirados do pouco que conhecemos e que chamamos vida. E a realidade de um sempre será a ficção do outro.
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REPORTAGEM por Rogério Pereira
Fonte: Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, online, 16/01/2011

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