domingo, 27 de fevereiro de 2011

KEN DOCTOR, CONSULTOR DE MÍDIA - Entrevista

“Até 2015, 75% dos livros serão digitais”
Especialista americano traça panorama otimista
para futuro da leitura,
de jornais e de livros

O californiano Ken Doctor trocou de lado. Funcionário de uma grande empresa jornalística dos Estados Unidos durante 21 anos – a Knight Ridder, com 32 diários, foi vendida em 2006 –, hoje ensina os antigos empregadores a sobreviver em um território ainda inóspito para a maioria: o da comunicação digital. É um dos consultores de mídia mais incensados da atualidade. Solicitado mundo afora para conferências, Doctor dissemina as 12 leis de seu livro, Newsonomics (nome também de seu site, o newsonomics.com). A principal delas, segundo ele mesmo aponta: os leitores estão se tornando seus próprios editores, e editores dos outros também. O súbito protagonismo de cada consumidor de notícias no oceano de informação da internet é uma novidade com a qual o mercado ainda precisa aprender a lidar.
– Decidimos o que ler ao encaminhar e-mails e comentar palpites de nossos amigos no Twitter ou no Facebook. É claro que a noção de boa edição ainda é importante, mas a era do editor como guardião, ou a do jornalista como contador de histórias exclusivo, ou do veículo como formador da opinião pública está acabando. Os leitores têm conquistado mais controle e mais acesso, e os profissionais precisam encontrar caminhos úteis para compartilhar com eles essa habilidade recém-adquirida – ensina Doctor em entrevista por e-mail.
O morador da costeira Santa Cruz, uma hora e meia ao sul de San Francisco, ilustra com um episódio corriqueiro a complexidade do desafio que se impõe a quem lapida noticiários. Em um passeio aéreo pelas proximidades da cadeia de montanhas do Himalaia – onde se ergue o pico mais alto do mundo, o Monte Everest –, observando o cenário estonteante, comentou com o piloto:
– Uau, é espantoso! Enfadado com a repetitiva rotina, o comandante devolveu:
– Vejo isso todos os dias.
O diálogo ilustrou a Doctor a importância de um ensinamento: é preciso surpreender a todo instante um público que, tem-se a impressão, já viu de tudo. É cada vez mais difícil emocionar, estarrecer, comover, mobilizar, escandalizar.
– Esse é o desafio com o qual todos os negócios de internet deparam hoje em dia. A expectativa dos consumidores digitais é, aparentemente, sem fim. Eles são impacientes. Satisfazê-los é quase impossível, mas tenho certeza de que aqueles que chegarem mais perto serão os vencedores.
O especialista dá nome a essa transformação atual: inicia-se a Era do Conteúdo Darwiniano.
– Éramos reféns da mídia local. Tínhamos de absorver o que quer que fosse que emissoras, jornais e revistas de nossa área nos dessem. Agora, o mundo se abriu: a mídia chinesa, a do Oriente Médio, a BBC e o New York Times cruzam todas as fronteiras graças à distribuição via internet. O conteúdo compete com o conteúdo, e nós, os leitores, decidimos quem sobrevive e prospera.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Zero Hora – Devem questioná-lo sobre isso a todo momento: o senhor vê um futuro animador para os jornais? Definiria-se como um otimista?
Ken Doctor – Sou um otimista nato, ainda que a mudança nos signos do zodíaco tenha deixado meus amigos e minha família apreensivos. Estamos no começo de uma maravilhosa era da distribuição da notícia sem fronteiras e da informação que pode mudar o futuro dos países, como está ocorrendo no norte da África, em poucas semanas. O apetite por notícias é insaciável, mas as barreiras para produzi-las caíram à medida em que a internet tornou jornais e revistas onipresentes. A imprensa, que já foi grandemente rentável, está sobrecarregada com todos os antigos custos da manufatura industrial, enquanto sites como o AOL’s Patch (rede de páginas hiperlocais da norte-americana AOL) produzem notícias locais com 4% do valor dos veículos impressos. Essa ampla diferença significa que estamos em uma época de caos, e apenas as empresas jornalísticas que se adaptarem rapidamente vão sobreviver e prosperar.

ZH – Quais são as suas primeiras impressões sobre o The Daily, jornal diário exclusivo para iPad lançado pelo magnata das comunicações Rupert Murdoch no início deste mês?
Doctor – É o USA Today de 2011. Não se trata de fazer um tipo de noticiário diferente, mas sim de apresentá-lo de outra maneira, como fez o USA Today em 1980. O The Daily começa a mostrar ao mundo o que editores podem fazer – diariamente, e não só uma vez por mês em uma revista – com vídeos, interatividade e interconectividade social. É um megajornal para o tablet, muito mais pelo visual impressionante do que por estar fazendo jornalismo de um jeito diferente. É uma inovação da qual lembraremos por muito tempo, mesmo que seja um fracasso financeiro.

ZH – O The Daily custa US$ 0,99 por semana. Como os jornais em papel vão sobreviver, já que logo outras iniciativas semelhantes devem surgir?
Doctor – O The Daily é notável, resultado de uma grande pesquisa da News Corp., a maior empresa de informação do planeta. A maioria dos jornais ainda são marcas fortes como veículos impressos, pelas quais os leitores pagam. Para todas essas empresas, a chave é vender assinaturas de acesso irrestrito, transformando os clientes do impresso em clientes digitais. “Cliente” significa muito mais do que “usuário” ou “visitante”, e os jornais podem colher benefícios dessa mudança. À medida em que os jornais migrarem para a plataforma digital, os custos podem ser significativamente reduzidos – é muito mais barato produzir e distribuir o jornal online. Então, os custos ao cliente podem ser diminuídos, e o lucro da empresa, mantido.

ZH – O senhor acredita em uma revolução promovida pelos tablets em escala planetária?
Doctor – O tablet é somente um acessório tecnológico, ainda que interessante. Mas não, não é o salvador. O que ele oferece às empresas de comunicação é a possibilidade de se reinventar. Pode virar o jogo por dois motivos: 1) os anunciantes adoram a possibilidade de os consumidores “mergulharem” em seus produtos; é um ótimo lugar para conectar marcas e potenciais compradores; 2) para os leitores, é libertador do confinamento exigido por laptops e desktops; permite uma utilização mais natural, adapta-se melhor à gente. A experiência de leitura online com mobilidade significa mais leitura, e isso é bom para novas empresas.

ZH – Países subdesenvolvidos podem participar desse processo de mudança e, mais do que isso, beneficiar-se dele?
Doctor – Tablets são dispositivos móveis, como grandes telefones celulares. Celulares estão entre os principais meios de comunicação no mundo em desenvolvimento. Os tablets, até três vezes maiores do que um telefone, oferecem a esses países o próximo passo em infraestrutura da comunicação móvel, chave para a educação e o desenvolvimento econômico.
DAMIAN DOVARGANES, AP
ZH – Como você vê o papel da internet e das redes sociais nos protestos em andamento no mundo árabe?
Doctor – Adoro a piada: Nasser (Gamal Abdel Nasser, que governou o Egito de 1954 até sua morte, em 1970), Sadat (Anwar Al Sadat, o sucessor no cargo, entre 1960 e 1981) e Mubarak (Hosni Mubarak, ditador que abandonou o poder este mês) se encontram no além. “O que aconteceu com você?”, um pergunta ao outro. Nasser: “Envenenamento” (a causa oficial de morte de Nasser foi infarto, e boatos sobre um suposto envenenamento, embora largamente difundidos, jamais foram comprovados). Sadat: “Tiros”. Mubarak: “Facebook”. A internet não respeita fronteiras ou ditadores mesquinhos. É como um lodaçal cercando qualquer sistema – pense no WikiLeaks – controlador que um governo possa montar. A revolução no Oriente Médio nos ensina, mais uma vez, que as pessoas desejam ser livres e ajuda a descontruir nosso preconceito contra os árabes. As mídias sociais, cada vez mais, nos ajudam a disseminar as notícias que achamos importantes – quando estamos sob um regime opressor ou apenas procurando um lugar legal onde comer.

ZH – Como você utiliza o iPad no seu dia a dia?
Doctor – Noticiário, mapas, filmes, jogos, vídeos dos meus programas favoritos – e, claro, para leitura. Gosto muito de me recostar para ler, é uma boa alternativa à posição estática, sentado, com uma tela grande quase em cima do seu rosto.

ZH – Você mudou completamente seus hábitos de leitura?
Doctor – Os meus hábitos são como os da maioria dos leitores. Somos contempladores agora, alternando-nos, ao longo do dia, de publicações impressas para a televisão, do rádio para a mídia digital, fazendo misturas e combinações. A leitura de notícias não é uma religião, é conveniência, e a conveniência depende muito de lugar, hora do dia, preferências.

ZH – Como você descreveria o leitor padrão de livros e jornais no iPad?
Doctor – Experiente, digitalmente falando. Mais inclinado a ser viciado em notícia do que o indivíduo comum. Trata-se de algo importante sobre o tablet. Pesquisas mostram que o tablet é o novo aparelho para leitura de notícias. É um de seus usos mais importantes. A internet, em um desktop ou laptop, é muito mais uma lista telefônica de páginas amarelas – o meio para encontrar as coisas rapidamente, ir daqui para lá.

ZH – O conteúdo sempre deve ser brilhante e surpreendente ou algo mais básico às vezes é suficiente?
Doctor – Não, importa mais o contexto do que o conteúdo. Notícia é notícia. A maneira como é apresentada – me dê um vídeo que eu possa parar, recomeçar, compartilhar, muito melhor do que uma foto, que é estática – faz toda a diferença. Não há dúvida de que o aspecto visual vai incentivar mais a leitura do que os jornais impressos, ainda que muitos jornais da América Latina tenham se tornado bem mais visuais ao longo dos últimos 10 anos.

ZH – O que é o mais importante agora: oferecer aos leitores um aplicativo ou esperar um pouco mais e dar a eles um aplicativo muito bom?
Doctor – A diferença, se os editores estiverem suficientemente atentos, deveria ser de meses. A mídia ganha pontos, como diria Woody Allen, por aparecer, apenas pegando carona em uma novidade amplamente divulgada. Na era do deslumbramento visual e da interatividade, entretanto, o alerta foi dado, e os editores precisam se mobilizar rápido, dependendo, claro, do nível de competitividade que enfrentam.

"Nós sempre teremos livros de papel,
mas eles serão mais especiais para nós de
alguma maneira"
ZH – O que virá depois do iPad?
Doctor – O iPad 2, claro, provavelmente em abril (a Apple convidou jornalistas para o lançamento na semana que vem, na Califórnia), com câmera e mais conectividade via entrada USB, para que o usuário possa conectar o tablet a outras tecnologias. A Apple vendeu 13 milhões de iPads, em 26 países, em menos de 12 meses de vendas. Os tablets – pense no iPad e em seus similares – se tornarão artigos baratos e presentes nas casas da classe média ao redor do mundo em cinco anos. Depois da próxima geração de tablets, a grande fronteira é a televisão. As TVs já se transformaram em “monitores”, mas ainda estamos basicamente como espectadores, sem interagir com o aparelho. Interagiremos, em breve. O monitor da TV, a três metros de distância de nós, é a próxima tela a alterar a forma como vemos o mundo, local e globalmente (pense no que ocorreu no Egito, há poucas semanas) e até em família (pense nas fotos e nos vídeos domésticos).

ZH – Os e-readers podem substituir o prazer da leitura de um livro convencional?
Doctor – Milhões de leitores do Kindle dizem que sim. É uma troca: grande flexibilidade e portabilidade versus a já conhecida sensação do papel nos dedos. O prazer está no objeto ou nas palavras? Estamos inseridos em um mundo híbrido de papel e plástico, e os consumidores nos dizem claramente que o acesso à leitura é mais importante do que a tecnologia, antiga ou nova.

ZH – Retomo a primeira pergunta, mas agora com outro foco: o senhor enxerga um futuro promissor para os livros em papel?
Doctor – Acredito que, até 2015, 75% dos livros serão digitais. Para os editores, os custos diminuem. Para os autores de não ficção, a atualização de conteúdo é quase instantânea, o que se trata de um grande diferencial para eles. Para os leitores, o acesso é mais rápido e mais fácil. Assim como os jornais impressos estão se transformando de produto de massa em produto segmentado, o mesmo acontecerá com os livros. Nós sempre teremos livros de papel, mas eles serão mais especiais para nós de alguma maneira.

ZH – Um dos maiores desafios é atrair anunciantes para as novas mídias. Como jornais e revistas devem agir?
Doctor – Editores tradicionais devem avançar para além do simples espaço de venda. O espaço, no meio impresso, é escasso, e portanto valioso. No mundo digital, o espaço é infinito e desvalorizado. Comerciantes não querem anunciar, querem alcançar o público. Consequentemente, editores atentos estão transformando suas empresas, de vendedoras de espaço, em consultoras para venda de espaços, cupons virtuais, anúncios de Facebook e Twitter e muito mais.

ZH – Outro desafio é cobrar pelo noticiário online – e a internet está repleta de conteúdo gratuito. Você acha que os usuários concordarão com isso?
Doctor – Não é uma questão de quando cobrar, como cobrar, ainda que essas dúvidas tenham consumido muitos empresários ao longo de 2010. O que importa saber é quais leitores pagarão por isso. Não é tão difícil assim entender a natureza humana. As pessoas pagarão pelo que tiver valor para elas, algo que elas não conseguem adquirir de graça. Então, as publicações – sejam de circulação nacional, sejam jornais semanais de bairro – com conteúdo amplo e aprofundado poderão cobrar. Esses veículos – diários de grandes cidades nos Estados Unidos, por exemplo – que têm muita competição com conteúdo gratuito terão mais dificuldade para convencer os leitores a pagar. Tenho acompanhado o processo do The New York Times de perto. É um padrão utilizado pelo Financial Times, e tem chance de funcionar: cobre apenas dos 5% a 10% de usuários diários mais frequentes – e não espante os demais com a cobrança.
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Reportagem por LARISSA ROSO
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Fonte: ZH/CULTURA online, 26/02/2011

Um comentário:

  1. Artigo muito foda!! Sempre entro aqui pra copiar alguma coisa desta entrevista!

    Abraço

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