terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Os genes do vício

FRANCISCO DAUDT*
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É um comportamento mais forte que você,
que vai contra seus interresses
mais prezados, mas que dá
um prazer imediatista

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ELA CHEGOU ao escritório do advogado dizendo que queria se separar. "Quantos anos a senhora tem?" Tinha 75 , estava casada há 52. O advogado, pasmo, quis saber o porquê.
"O pai do meu marido era alcoólatra. Por isso, ele jurou que nunca ia pôr uma gota de bebida na boca. Cumpriu até três anos atrás, quando se aposentou. Os amigos cervejeiros disseram que agora ele podia, e ele passou a beber.
Agora, chega de porre e me bate. Quero me separar!" A história, verídica, é assustadora. O filho intuiu que tinha uma herança maldita, fez de tudo para que ela não o atingisse, mas deu mole aos 47 do 2º tempo... e tomou gol! Ouvi dizer, há tempos, que havia um gene para o alcoolismo. Não acreditei. Depois de conhecer essa história, fiquei embatucado. Anos de clínica mais tarde, entendi que hereditário não era o alcoolismo, mas o vício.
Pois fui tomando contato com uma multiplicidade de vícios insuspeitados: tabagismo; consumismo; sado-masoquismo; jogos a dinheiro (cavalos lerdos; mulheres ligeiras; roleta; pife-pafe; bingo); drogas lícitas ou não; "donjuanismo" (o vício da conquista); "winner-loser" (em tradução livre, o vício do jogo "fodão-merda", em que alguém precisa se afirmar como melhor humilhando o outro, por insegurança) etc.
O que é vício? É um comportamento compulsivo (mais forte que você), repetitivo, que vai contra seus interesses mais prezados, que te autodestrói, que te humilha aos seus próprios olhos, mas que dá um prazer imediatista, uma ilusão de grandeza, uma sedução de que os problemas do mundo se foram.
Ele pode ser tão genético quanto a depressão o é. A depressão é um mecanismo de defesa contra os horrores do mundo: se o estresse é grande, o sistema entra em pane e ficar debaixo das cobertas pode ser necessário.
Aí pode entrar o vício como uma espécie de remédio. De fato, o alcoolismo é o remédio mais comum contra a depressão. É meio tragicômico, mas vários pacientes recusam antidepressivos (porque podem viciar) enquanto aceitam o álcool e a cocaína como remédios "naturais" com que aliviam suas dores.
Não os recrimino. Eles viram seus pais caretas tomando Valium e não querem virar pessoas iguais a eles.
É um tanto trabalhoso convencê-los de que o antidepressivo é uma ferramenta para que mudem suas vidas.
Porque os antidepressivos são não naturais, são "químicos" diferentes. Naturais mesmo (atenção, naturebas) são a depressão e os vícios, uma dobradinha milenar.
Estou me lembrando de um amigo clínico que, perguntado por uma cliente com infecção se ele não tinha algo mais natural que o antibiótico para tratá-la, respondeu: -Não há nada menos natural do que um antibiótico, cuja tradução é contra a vida. Mas é contra a vida do germe, e a favor da sua. Se a senhora tem peninha dos germes, procurou o médico errado, mas arque com as consequências de fazer bem a eles.
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* FRANCISCO DAUDT, psicanalista e médico, é autor de "Onde Foi Que Eu Acertei?", entre outros livros
fdaudt2@gmail.com.br

Fonte: Folha online, 15/02/2011

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