quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Solidariedade, um anestésico de ocasião para consciências pesadas

(*) Ucho Haddad
“Nunca compreendi a solidariedade.
Aceitei-a como artigo de fé tradicional.
Se tivéssemos coragem de afastá-la completamente, l
ivrar-nos-íamos do peso que incomoda
 a nossa personalidade.”
(Henrik Johan Ibsen, dramaturgo norueguês)

Diferentemente do que pensa a maioria, a palavra solidariedade não tem em sua essência o viés da benemerência, da compaixão e da piedade que tantos insistem em lhe impor. Com origem no latim, “solidare”, solidariedade, em termos etimológicos, significa “solidificar”, “confirmar”. A origem é a mesma do adjetivo “sólido” (do latim “solidu”), que significa aquilo “que tem consistência, que não é oco, que não se deixa destruir facilmente”.
Há dias, nas reticências da tragédia que alvejou a serra fluminense, muitos veículos de comunicação noticiaram ser o povo brasileiro o mais solidário de todos. Uma inverdade descomunal, pois o que se viu foi uma correria repentina e desordenada para socorrer as vítimas das chuvas que levaram, morro abaixo, casas, vidas, sonhos futuros, histórias passadas. Tudo não passou de uma ação pontual e coletiva, que funcionou como um alvejante sob encomenda para mentes normalmente imundas e pecaminosas.
No contraponto, com o passar do tempo, a realidade recobrou suas forças e retornou ao seu lugar de sempre. O altar da sordidez. Muitas das doações enviadas às cidades serranas foram alvo de desvios e subtrações criminosas, enquanto autoridades e entidades de ajuda humanitária disputavam o direito de comandar a operação de socorro aos sobreviventes.
Analisando com a devida calma a situação decorrente da mais recente catástrofe natural do País – no próximo verão teremos mais – é possível perceber que a solidariedade tem suas semelhanças com a fé. Quando se encontram em enrascadas ou dificuldades, os crentes recorrem às orações, quando não aos santos de plantão. O mesmo acontece com a solidariedade, que precisa de uma matança em larga escala e com detalhes trágicos para que as pessoas descubram que a solidariedade é a principal garantia de uma existência coletiva e recíproca. Nessas horas de destruição e dor ninguém é capaz de pensar que a solidariedade só existe como relação social quando se permite uma via de múltiplas mãos.
"Como se solidariedade tivesse
prazo de validade,
que depois de aberta deve ser consumida
em poucos dias."

Na verdade, a solidariedade traduz com certa elegância uma relação típica de democracias responsáveis, onde a união ocorre à sombra da semelhança horizontal existente entre as pessoas enquanto cidadãs. Em outras palavras, a solidariedade é uma relação de interdependência, de reciprocidade contínua. Não devemos confundir a interdependência anteriormente citada como uma situação em que um depende do outro e vice-versa. É, em suma, uma relação em que prevalece o respeito mútuo e a reciprocidade incondicional, sempre sob a batuta da dignidade.
Como sempre lembra o brilhante jornalista Carlos Brickmann, em tempos de escassez de notícias até castelo de areia na praia é forte candidato a manchete. No momento em que as avalanches de terra dizimaram centenas de vidas no Rio de Janeiro, a imprensa nacional estava sob a pasmaceira noticiosa que sempre marca o começo de qualquer ano. Como se repetissem o comportamento de anos anteriores, a maioria dos veículos buscava pautas capazes de gerar audiência – e leitores também – e que por consequência rendessem polpudas quantias de dinheiro. Essa receita maltrapilha normalmente funciona, pois o ser humano, não é de hoje, se acostumou a usar a desgraça alheia como atenuante para os próprios problemas. Uma espécie de indutor do conformismo boçal.
Encerrada a temporada de sensacionalismo midiático, as vítimas das chuvas e dos deslizamentos de terra, que arrasaram as cidades fluminenses, caíram na costumeira vala do esquecimento. Como se solidariedade tivesse prazo de validade, que depois de aberta deve ser consumida em poucos dias. A destruída serra do Rio deu passagem ao corre-corre cotidiano da vida, acabou substituída pelos ridículos e exibicionistas participantes demais edição do enfadonho Big Brother Brasil, um sucesso de renda e público que consegue aniquilar a consciência popular, inclusive de uma parcela daqueles que ainda raciocinam minimamente. Os veículos de comunicação, sempre assanhados diante das verbas oriundas da publicidade oficial, passaram a escassear de forma homeopática e imperceptível os espaços destinados ao tema. É aquela velha e binomial teoria que reina no submundo da imprensa genuflexa. Quem recebe se cala; quem cala, consente. Tudo no melhor estilo rufião de lupanar. Mas isso pouco importa, pois as vítimas da incompetência do Estado deixaram momentaneamente de dar lucro. E a ordem mundial, burra como sempre, é caminhar na direção da próxima cornucópia, mesmo que dela surjam níqueis lamacentos.
Mas não foi apenas a bizarrice da bacanal televisiva exibida pela sempre virulenta Vênus Platinada que roubou a atenção dos outrora “solidários”, que até recentemente se organizavam em caravanas rumo aos desabrigados. Agora eles têm uma nova diversão, algo diferente para se preocupar. Nas próximas duas ou três semanas, até a chegada da folia momesca, esses pretéritos e meteóricos monges da bondade se divertirão com as besteiras de alguns políticos estreantes, que em pouco tempo terão transformado o Brasil em um picadeiro de dimensões continentais. Aquela turma que sonhava em ajudar o próximo estará ocupada com as novas Excelências, como os deputados Tiririca e Romário. Estarão atentas aos bofetes que o deputado-pugilista Popó dará na face do imaculado (sic) senador Eduardo Suplicy, pois ambos combinaram de subir ao ringue. Tudo porque cada um desses respeitáveis representantes do povo consome, ao seu modo, R$ 130 mil mensais do suado dinheiro do contribuinte.
Palhaçadas e galhofas políticas à parte, o meu propósito é discorrer sobre solidariedade. Mas o que é solidariedade? É um estado de consciência plena daqueles que sabem e querem viver e conviver com o seu semelhante de maneira respeitosa e civilizada. Ser solidário é não se entregar ao consumismo, pois tal comportamento, algumas vezes psicótico, gera lixo além do necessário. E lixo é o tipo de mercadoria que não há mais onde colocar. Ser solidário é não abrir a janela do carro e arremessar a bituca do cigarro no asfalto, pois em algum momento o bueiro da esquina vai dar a sua resposta. Ser solidário é não parar em fila dupla à porta de colégios, academias e outros estabelecimentos, até porque o seu filho não consta da árvore genealógica do Aladim, assim como sua filha jamais será dona do “derrière” mais empinado e cobiçado do planeta. Ser solidário é ter consciência que calçadas foram inventadas para pedestres e jamais devem ser transformadas em estacionamentos privados, como se aquele que caminha tivesse culpa por ter nascido.
Ser solidário é um estado de alma, de espírito, é um dos importantes capítulos do exercício da cidadania. É entender que o seu direito termina exatamente no ponto em que começa o do outro. É não ter a mente oca, é ter consistência de pensamento, é agir de forma sólida em relação ao próximo. Ser solidário não é tirar do armário aquelas roupas velhas e fora de moda, que não lhe servem mais, e enviar aos menos afortunados, arrumando espaço para abrigar as novas compras do próximo final de semana. Até porque, atitudes como essa não passam de um éter oportunista capaz de reduzir a nada a dor que qualquer consciência pesada provoca silenciosamente nos incoerentes.
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* Ucho Haddad, 51, é jornalista investigativo, analista e comentarista político, poeta e escritor. Editor do www.ucho.info, é articulista do site do jornalista esportivo Wanderley Nogueira, do Inforel e da Gazeta do Oeste.
Fonte: www.ucho.info -01/02/2011

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