quinta-feira, 17 de março de 2011

Como prever o efeito das atividades humanas

Fernando Reinach*
Um pequeno trabalho científico, de menos de uma página de texto, demonstra o tamanho de nossa ignorância. O método utilizado por cientistas para avaliar o impacto de uma atividade humana (como o desflorestamento da Amazônia ou a queima de combustíveis fósseis) é muito semelhante ao método utilizado por cada um de nós para avaliar o efeito da compra de um carro nas finanças.
Não basta saber quanto custa o carro, é preciso entender os fluxos e os estoques de dinheiro à nossa disposição e então avaliar o efeito da compra do carro sobre esses fluxos e estoques. Em uma família, existe um fluxo de dinheiro que entra nos cofres todos os meses - é o salario recebido pelos membros da família. Existe também um fluxo de dinheiro que sai todos os meses - são as contas de alimentação, aluguel, prestações, escola, etc. Existe também um estoque de dinheiro, provavelmente em uma conta bancaria ou debaixo do colchão.
Todos sabemos que, dependendo de como se comportam os fluxos de entrada e saída, o estoque poupado pode aumentar ou diminuir. De posse desses dados é possível avaliar o que ocorre quando compramos um carro. Em um primeiro momento, o estoque vai cair, mas é importante entender que os fluxos também vão se alterar. Vai surgir a conta da gasolina e do IPVA, mas talvez desapareça a conta do ônibus e assim por diante.
Para estudar o impacto de uma queimada ou do desaparecimento de uma floresta sobre a quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera, os cientistas usam um modelo semelhante ao que utilizamos para avaliar o efeito da compra de um carro.
Primeiro, precisam entender e quantificar os mecanismos naturais que produzem os gases-estufa (gás carbônico e metano) e os liberam na atmosfera (seria o equivalente aos salários). Depois, precisam entender e quantificar os mecanismos naturais que removem esses gases da atmosfera, como a fotossíntese nas plantas e outros mecanismos de captura que existem no planeta (seria o equivalente às despesas). Finalmente, precisam avaliar os estoques presentes sob diversas formas no planeta, como a quantidade de gás carbônico na atmosfera, a quantidade de carbono nas florestas ou nos ambientes marinhos (seria o equivalente às contas correntes, as poupanças e outros tipos de investimento).
"Um bom exemplo dessa falta de conhecimento
ficou evidente quando um grupo de cientistas
quantificou a quantidade de metano e
gás carbônico emitida
pelos rios e lagos."
De posse de todos os dados, os cientistas constroem um modelo de como funciona o ciclo do carbono no planeta, do mesmo modo que construímos um modelo de como funcionam as finanças de nossa casa. É com base nesse modelo que eles podem simular o que acontece quando queimamos uma floresta e liberando gás carbônico e, assim, estimar como a ação humana afeta os fluxos e estoques de carbono.
Mas enquanto o modelo financeiro de uma casa é bastante simples e nossa certeza de que ele está correto é bastante alta (podemos ter esquecido alguma conta ou copiado errado o saldo da poupança) e, portanto, permite uma avaliação muito precisa do efeito da compra do carro, os modelos que descrevem os fluxos e estoques de carbono no planeta são ainda imperfeitos. Muitos dos fluxos são desconhecidos e muitos dos conhecidos são mal quantificados. Além disso, a quantidade dos estoques também é estimada com um alto grau de incerteza.
O resultado é que é difícil estimar com precisão o impacto de uma atividade humana. É como tentar avaliar o efeito da compra de um carro sem saber quanto temos na poupança ou qual é realmente a renda familiar.
Desconhecimento. Um bom exemplo dessa falta de conhecimento ficou evidente quando um grupo de cientistas quantificou a quantidade de metano e gás carbônico emitida pelos rios e lagos. Sabemos que os continentes capturam e estocam grande quantidade de carbono (eles capturam na ordem de 2,6 petagramas de carbono por ano - um petagrama são 1.015 gramas), e esse número é utilizado nos modelos que descrevem os fluxos de carbono no planeta.
Mas, até agora, os rios e lagos, que estão nos continentes, não entravam na conta, apesar de se saber que eles têm o efeito oposto, liberando gás carbônico e metano na atmosfera. Eles não entravam na conta porque não havia estimativa da quantidade de gases-estufa que eles liberavam e, consequentemente, eles eram simplesmente ignorados (é como se eu, não sabendo quanto gasto na padaria, simplesmente desprezasse esse dado no meu orçamento).
Agora, cientistas estimaram quanto os rios e lagos liberam de gases-estufa e, para surpresa de todo mundo, descobriram que essa quantidade é muito grande, entre 0,65 petagrama e 1,4 petagrama por ano, dependendo se forem contabilizadas somente as emissões de metano ou de metano e gás carbônico.
Se essa estimativa estiver correta, a capacidade real de captura de carbono dos continentes pode ser menos da metade do que se imaginava. É claro que esse novo dado, quando incorporado aos modelos, alterará em parte as conclusões. O importante é que esse trabalho demonstra quão imperfeitos são os melhores modelos de que dispomos para avaliar o efeito das atividades humanas no equilíbrio geral do ciclo do carbono.
A situação não é muito diferente da de uma família que deseja calcular o impacto da compra de um carro sem saber quanto ganha, quanto gasta e quanto tem no banco.
Mas em ciência o progresso é assim mesmo, gradual. Não há dúvida de que os modelos atuais são muito melhores do que aqueles que possuíamos há alguns anos, mas é preciso lembrar que eles ainda estão longe de serem fieis à realidade. E conclusões geradas por modelos imperfeitos são por natureza imperfeitas, mas, sem dúvida, são melhores que simples palpites. O importante é prosseguir rapidamente a investigação e aperfeiçoar os modelos.
-----------------------------------
* BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: FRESHWATER METHANE EMISSIONS OFFSET THE CONTINENTAL CARBON SINK. SCIENCE, VOL. 331, PÁG. 50
Fonte: Estadão online, 17/03/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário