segunda-feira, 28 de março de 2011

A razão contra a ''crença''

Myriam Revault D'Allonnes*
Imagem da Internet
"A nossa modernidade não está baseada na oposição 
simplista entre a 'razão' e a 'crença'. 
Além do fato de que a crença na racionalidade foi ela mesma 
uma das bases do pensamento iluminista, 
parece que a razão trabalha sempre sobre um dado que, 
enquanto tal, é opaco ao conhecimento e, portanto, 
necessariamente objeto de uma elaboração."

A reivindicação de autonomia da razão perante as crenças e os preconceitos herdados da tradição é considerada um dos fundamentos da nossa modernidade intelectual. Assim, o filósofo racionalista que quer conquistar a autonomia e se libertar dos preconceitos deve sobretudo admitir que todas as coisas, aparentemente, são evidentes e óbvias, devem ser interrogadas e que as crenças não refletidas devem ser submetidas ao crivo da razão.
Para a filosofia iluminista, a razão deve encontrar o seu fundamento em si mesma e não se ancorar mais em pressupostos que lhe seriam exteriores. A radicalidade dessa posição está no fato de se afrontar a uma tradição dogmática, a da leitura religiosa da Escritura sagrada. Não admitiria nenhuma autoridade nem se submeter ao tribunal da razão: é a exigência que recusa o valor absoluto de toda tradição.
Esse processo, por meio do qual as sociedades ocidentais modernas saíram da órbita religiosa, das forças e das seduções mágicas, foi qualificada pelo sociólogo alemão Max Weber como "desencantamento do mundo". Esse movimento é, ao mesmo tempo, aquele por meio do qual ocorreu um processo de racionalização instrumental cada vez mais crescente.
A não influência do religioso nas representações que os seres humanos fazem do mundo e da sua própria existência acompanhou, assim, a formação do Ocidente moderno. Ela implica não que nós conheçamos melhor as condições em que vivemos, mas, ao contrário, que pensamos poder dominá-las, já que, em princípio, não existe nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira no curso da nossa vida.
Ora, isso significa, sublinha Max Weber, "desencantar o mundo" e privá-lo de sentido. Porque se tudo – ou quase – é previsível e calculável, se a maior parte dos nossos atos tendem teoricamente a ser redes para a relação dos meios e dos fins, o que acontece com os valores suscetíveis de orientar a ação? Se um mundo regulado pela tradição acredita no valor imemorial daquilo que sempre existiu, o processo de emancipação próprio à modernidade provocou uma perda do consenso global sobre os valores da ação, notavelmente na esfera pública.
Tal é, portanto, a experiência fundamental de uma modernidade que colocou em causa a ordem tradicional e se encontrou obrigada, por essa razão, a definir novas posições, necessariamente incertas. Um mundo fundado na tradição acredita na validade daquilo que sempre existiu. Enquanto que a contestação dos modos consagrados de atribuição de sentido se acompanha por um processo de emancipação que pode, por sua vez, ser contestado tanto nos princípios quanto nos resultados.
Assim, a modernidade está ligada a uma cultura dividida em que se enfrentam modos de legitimidade antagônicos. Max Weber falava de "politeísmo dos valores", para designar essa situação existencial do homem moderno, diante das escolhas que não lhe são impostas mais com uma evidência incontestada.
O homem moderno é obrigado
a criar sentido ou, 
ao contrário, sentidos: 
a pluralidade deve ir lado a lado 
com a problematicidade 
e a criatividade.
O homem moderno está dividido entre regimes de existência heterogêneos, valores conflitantes, pertenças múltiplas. A perda de evidência de um sentido dado, o esfacelamento dos antigos sistemas simbólicos colocam os indivíduos em uma incerteza que – longe de coincidir, como frequentemente se pretendeu, com a ausência ou com o vazio de sentido – está ligada à sua pluralização.
O homem moderno, confrontado com racionalidades plurais, deve escolher entre opções mais ou menos antagônicas. Mas a perda da unidade de sentido lhe dá, assim, como destaca Max Weber, a capacidade de tomar posição diante da realidade que o circunda. O homem moderno é obrigado a criar sentido ou, ao contrário, sentidos: a pluralidade deve ir lado a lado com a problematicidade e a criatividade.
Enfrentar desse modo o problema da relação entre a razão e a "crença" (que não tem um significado unívoco, porque mistura representações mais ou menos racionais, crenças afetivas, fé, confiança no sentido da fé latina) permite compreender que a nossa modernidade não está baseada na oposição simplista entre a "razão" e a "crença".
Além do fato de que a crença na racionalidade foi ela mesma uma das bases do pensamento iluminista, parece que a razão trabalha sempre sobre um dado que, enquanto tal, é opaco ao conhecimento e, portanto, necessariamente objeto de uma elaboração.
A racionalidade se constrói, portanto, a partir de uma experiência primeira que constitui, de algum modo, o nosso "ser-no-mundo". A exigência de racionalidade – que é essencial – não faz desaparecer aquelas dimensões do vivido que são o sagrado, o imaginário, o instintivo ou também o afetivo e, evidentemente, a crença. São as orientações sobre as quais se enraíza a racionalização. A crença, pelo menos, dá o que pensar.
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*A opinião é da filósofa francesa Myriam Revault D'Allonnes, professora da École Pratique des Hautes Études, em artigo publicado no jornal La Croix, 25-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 28/03/2011
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