domingo, 17 de abril de 2011

‘Clarice Lispector? Uma adolescente aprendendo a escrever’

Sergio Rodrigues*
Clarice Lispector - Imagem da Internet
Os leitores habituais deste blog sabem que raramente conto aqui histórias pessoais. Sei que desse modo contrario o que, a julgar pela evasão de privacidade cultivada por grande parte dos colegas, é uma vocação do meio. Prefiro ser fiel a uma vocação minha e dosar a primeira pessoa. Todo esse nariz de cera é para abrir uma baita exceção e contar que um dia tive uma namorada inglesa que odiou – ou talvez eu devesse carregar no verbo e escrever abominou, execrou – nossa grande Clarice Lispector. Foi um episódio marcante.
Eu tinha vinte e cinco anos e morava em Londres, como correspondente de um jornalão brasileiro. Ela tinha no trato afetivo um pragmatismo anglo-saxônico que eu, acostumado ao ronronar dos namoros brasileiros, via como distância emocional. Incomodado com a dissociação entre corpo quente e alma fria, julguei necessário corrigi-la. Como? Ah, mas é claro. Quem disse que a literatura não serve para nada?
Minha namorada inglesa (mas talvez ficante, palavra que eu não conhecia na época, caiba melhor) era uma ardorosa leitora. Tínhamos papos animados, eu mais ouvindo que falando, sobre escritoras que a faziam vibrar: Isak Dinesen, Jean Rhys, Angela Carter. Hmm, pensei, julgando-me perspicaz: todas mulheres. Achei sem dificuldade na Waterstone’s da Hampstead High Street uma tradução de Clarice que pareceu decente: The passion according to G.H. O presente, assim que o entreguei, fez sucesso.
Nada me preparou para o fracasso estrondoso que sobreviria. Poucos dias depois, quando reencontrei minha querida inglesinha (que vai ficar sem nome mesmo, a exceção ao recato é condicional), eu estava pronto para emendar com ela uns ronrons em torno dos meandros da alma clariciana, papo que gozava de belo histórico de sucesso com compatriotas. Quando perguntei pelo livro, porém, recebi de volta uma careta. Ela não tinha gostado. Na verdade, tinha abandonado após quinze páginas, não conseguia ler aquilo. Incrédulo, quis que explicasse por quê. Ela preferia não. Insisti.
“Todos os escritores brasileiros são assim?”, perguntou por fim. Recebi aquilo como uma agressão. “Assim como, intimistas? Não, claro que não, temos Guimarães Rosa e…” Mas a mulher não se referia ao intimismo. “Assim, indulgentes com a prosa. Pomposos, tentando ser poéticos. Eu odeio isso. Soa como uma adolescente trancada no quarto aprendendo a escrever.”
"(Clarice não é nada senão a trágica
luta da linguagem contra si mesma)
...nem Clarice, vamos combinar,
está livre de momentos que
cheiram a encheção de lingüiça
ou filosofia de botequim"
Na época, interpretei essas palavras como um atestado de filistinismo da dona. A partir desse episódio passei a aceitar bem, e na verdade a ampliar, a distância emocional entre nós. Alma fria e corpo quente é uma combinação que tem seus encantos, embora costume durar pouco. Qualquer coisinha, ela quebra. Uma discordância de gosto, por exemplo.
Com o tempo entendi melhor o fiasco daquela carícia literária. É claro que minha namorada não chegou a conhecer Clarice de verdade: em outro momento, talvez com outro título, acredito que a voz autorreferente, perturbadora, cruel da escritora brasileira pudesse fisgá-la. Não aconteceu, ela ficou na superfície do texto, uma superfície que também é Clarice. E o que viu contrariava tanto sua concepção de boa escrita que se sentiu repelida.
E que concepção seria essa? Para começar, a valorização de certa concretude, manifesta na preponderância de substantivos concretos sobre substantivos abstratos (Clarice é a goleada dos substantivos abstratos). Em seguida, a exigência de uma sensação clara de percurso, de ir de um ponto a outro, que traduz e se reflete numa visão da linguagem como instrumento para um fim – narrativo, descritivo, argumentativo – e jamais um fim em si (Clarice não é nada senão a trágica luta da linguagem contra si mesma). Terceiro, como coroamento dos dois traços anteriores, um faro hiperaguçado para as infinitas possibilidades de embromação que a linguagem propicia ao abrir mão da referencialidade e se enamorar de si mesma (nem Clarice, vamos combinar, está livre de momentos que cheiram a encheção de lingüiça ou filosofia de botequim).
Esse choque de concepções literárias básicas entre uma inglesa e um brasileiro no fim dos anos 80 do século passado tem me voltado à memória nos últimos tempos. Sinto a tentação de situá-lo no quadro mais amplo de duas matrizes das letras internacionais, anglófona x francófona. Sim, eu sei que isso é uma simplificação e que o mundo lá fora comporta infinitas nuances, mas talvez não seja descabido apostar na atualidade do esquema ao ler na imprensa de língua inglesa artigos que se veem obrigados a desfiar argumentos tortuosos para defender Derrida e Foucault da acusação generalizada de picaretagem intelectual.
Sei lá, talvez tenha sido aquele tempo em Londres. Ou quem sabe foi a firme presença de Hammett em minha fase de formação. Só sei que meu faro tem andado aguçado – a começar por esta mesa de trabalho – para as infinitas possibilidades de embromação que a linguagem propicia ao abrir mão da referencialidade e se enamorar de si mesma. Se me incomoda que um certo grau de firulismo ainda seja visto por tantos de nós como marca indispensável da alta literatura, reconheço que a coisa pode ter sua beleza, claro, quando o amor é sincero e o talento, maior. Mas a tal indulgência…
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FONTE: http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/vida-literaria 14/04/2011

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