sábado, 23 de abril de 2011

Depois de Chernobyl e Fukushima

POLÊMICA IRRADIADA (2)
CÉSAR ZEN VASCONCELLOS*
Oded Balilty, AP
Camponesa que vivia perto da Chernobyl, na Ucrânia, chora ao lembrar do acidente.

Físico da UFRGS responde a artigo de George Monbiot sobre os efeitos da radiação nuclear em Chernobyl e o futuro da indústria atômicaHá uma enorme distância entre pertencer a um movimento antinuclear e pertencer a um movimento a favor do desarmamento nuclear ou que questiona a utilização de usinas nucleares como geradoras de energia. Nesse sentido, é preciso considerar sintomática a existência de cientistas que atuam no campo da física nuclear (como é o meu caso) ou no campo da engenharia nuclear, que não são obviamente favoráveis a um movimento antinuclear no sentido genérico do termo, mas que se declaram a favor do desarmamento nuclear e questionam a construção de usinas nucleares. Fazem isso porque conhecem profundamente os seus malefícios.
Ser contra a energia nuclear no sentido genérico do termo demonstra desconhecimento sobre a natureza e a origem da própria vida. Os átomos que compõem o nosso corpo e todas as coisas que conhecemos e nos rodeiam contêm no seu interior núcleos atômicos. É a energia nuclear dos núcleos atômicos contidos em nossos corpos que mantém a nossa vida. Ser contra a energia nuclear (no sentido genérico do termo) é ser contra a própria vida! Sem energia nuclear não existiríamos. O próprio Sol, fundamental para a existência da espécie, consome energia de natureza nuclear para emanar o calor que sustenta a vida...
No artigo “O Lobby Antinuclear Enganou a Todos Nós” (Cultura de 16 de abril), o jornalista George Monbiot contra-argumenta a doutora Helen Caldicott sem citar explicitamente quais são os correspondentes “argumentos fortes” aos quais se refere. É muito difícil contradizer alguém que diz genericamente que “...a resposta me balançou profundamente”, sem citar qual é a resposta (nem mesmo qual é a pergunta), ou o nível de conhecimento do jornalista sobre questões técnicas no campo da física ou da engenharia nuclear e assim por diante. Mas vamos fazer um esforço para responder à altura suas indagações. Duas afirmações dele são extremamente questionáveis. A primeira dá a entender que ele acredita que não há artigos científicos que demonstram os perigos da radiação. E a segunda também dá a entender que relatórios ou artigos patrocinados pela Academia Nacional de Ciências dos EUA contradizem afirmações sobre os perigos da radiação para a saúde humana. Nada mais falso.
Há inúmeras publicações científicas que demonstram os perigos da radiação nuclear em situações de risco. A mais importante instituição neste campo é a Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), cujo foco de atenção é a cooperação mundial no domínio nuclear. Se o jornalista se der ao trabalho de acessar o site da Aiea, verá que a organização publica textos técnicos e científicos no campo nuclear desde 1957. Inúmeros deles fundamentam a preocupação da humanidade com os riscos da utilização de processos e técnicas nucleares, em determinadas circunstâncias. Assim como demonstram que, em outras circunstâncias, essa utilização pode ser extremamente benéfica para a humanidade (radioterapia e radiomedicamentos, entre outros).
"A radioatividade nuclear pode durar
desde segundos até séculos.
Essa temporalidade depende do grau
de estabilidade do elemento atômico
que sofre decaimento radioativo."
Fiz uma pesquisa e encontrei exatamente 94,4 mil trabalhos publicados apenas no item “riscos da energia nuclear”. Tenho a lista completa e posso enviar a ele. E uma parte expressiva destas publicações, pasmem, foi realizada no âmbito da Academia Nacional de Ciências dos EUA.
Quanto ao número de mortes em razão do acidente de Chernobyl, é difícil estabelecer um número oficial. Isso porque a radiação pode produzir inúmeros danos ao organismo vivo. Esses danos dependem do tempo de exposição à radiação, bem como do nível de radioatividade ao qual o organismo está exposto. Acidentes nucleares podem produzir mortes e efeitos danosos aos organismos vivos em prazos curtos, médios e longos. Células vivas expostas à radiação nuclear podem ser destruídas ou modificadas, originando doenças e até mesmo a morte. A radioatividade nuclear pode durar desde segundos até séculos. Essa temporalidade depende do grau de estabilidade do elemento atômico que sofre decaimento radioativo. É muito difícil, por isso, precisar o número de mortos de um acidente nuclear.
Quanto a Chernobyl, a ONU revelou, em 2005, portanto 19 anos depois do acidente, em um relatório muito contestado por ser considerado como uma subestimativa precária, que haviam ocorrido até aquela data 56 mortes, sendo 47 delas de trabalhadores e nove de crianças com câncer na tireoide. Suas estimativas indicavam ainda que cerca de 4 mil pessoas morreriam de doenças associadas com o acidente de Chernobyl. Ainda quanto a Chernobyl, há relatórios da Aiea, da Organização das Nações Unidas (Fórum de Chernobyl), da Organização Mundial da Saúde, dentre muitos outros; ou seja, vários organismos de inconteste prestígio junto à comunidade internacional têm se dedicado a este tema. Como resultado, há números e estatísticas as mais variadas sobre o acidente de Chernobyl. Particularmente, um dos estudos que mais me impressionou até hoje refere-se à região mais atingida pelos efeitos da radioatividade oriunda do acidente de Chernobyl. Trata-se de um relatório apresentado à ONU pelo governo de Belarus, indicando 270 mil casos de câncer atribuídos ao acidente de Chernobyl, sendo 93 mil desses casos com alta probabilidade de se tornarem fatais.
Artigos científicos – como por exemplo o texto “Current State of Epidemiological Studies in Belarus about Chernobyl Sufferers” publicado pelo Journal of Physics da Universidade de Kyoto, de autoria de Vladimir P. Matsko, do Instituto de Radiobiologia da Academia de Ciências de Belarus, a região mais atingida pelos impactos de Chernobyl – tratam exaustivamente do tema. O autor do artigo analisa os resultados obtidos por meio de estudos epidemiológicos comparativos aos dados antes e depois do acidente, dados estes publicados pelo Ministério da Saúde de Chernobyl. Os dados relativos ao período 1980-1995 revelam, por exemplo, um crescimento dramático de doenças as mais diversificadas (digestão, urogenital, nervos, sistemas endócrino, ouvido, garganta, nariz, tanto entre adultos quanto em crianças) bem como aumento dos casos de câncer da tireoide e da mama, problemas oncológicos, entre vários outros. É preciso salientar que, além dos problemas da radiação, houve outros problemas muito sérios pós-acidente de Chernobyl, aqueles relacionados com stress psicoemocional, agravamento da situação socioeconômica, das condições de nutrição e de qualidade de vida em suma na região. Ou seja, um acidente das proporções de Chernobyl afeta a vida, a qualidade de vida, as condições de sobrevivência, com impactos socioeconômicos que podem ser devastadores.
As evidências de problemas com bebês são muito claras. Cito apenas um artigo, por simplicidade: “Changes in Registered Congenital Anomalies in the Republic of Belarus After the Chernobyl Accident”, de G. I. Lazjuk, D. L. Nikolaev e I. V. Novikova, publicado na revista Stem Cells, em 2009 (DOI: 10.1002/stem.5530150734), que mostra acréscimos muito expressivos dos casos de deformidade, mutação e má formação de bebês e animais depois do acidente, na área de Belarus, devido aos altos índices locais de radiação. O jornalista com quem estou debatendo precisa entender que a ciência reconhece quando problemas congênitos de má formação são oriundos de excesso de radioatividade, examinando para isso as alterações genéticas produzidas pela radiação. Não há mentiras nem subterfúgios em tais afirmações. A ciência, infelizmente, aprendeu com os efeitos da radiação em seres vivos depois das explosões de Nagasaki e Hiroshima.
A questão que se coloca, porém, não é “O lobby antinuclear enganou a todos nós”. A pergunta correta depois de lermos o artigo enfocado é: o lobby da indústria nuclear pretende enganar a todos nós? Mais uma vez? Apesar de Chernobyl e Fukushima?
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* Professor de física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Fonte: ZH/CULTURA online, 23/04/2011

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