domingo, 24 de abril de 2011

Um livro indesejável

Juremir Machado da Silva*

Crédito: ARTE PEDRO LOBO

Certos livros causam estragos. Maltratam o passado. Acabei de ler um assim: "Indesejáveis - Instituição, Pensamento Político e Formação Profissional dos Oficiais do Exército Brasileiro (1906-1946)", de Fernando Rodrigues, doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O que diz o seu livro? Que o Exército brasileiro adotou medidas para impedir a entrada, nos seus quadros, "de negros, de judeus e de islâmicos, grupos considerados subversivos ou inferiores racialmente para a formação de uma nova elite militar". Para afirmar isso, o historiador consultou cerca de 20 mil fichas de inscrição para a Escola Militar de Realengo e os sucessivos regulamentos do ensino militar no Brasil.
É empolgante ver como fomos do "cadetismo" do século XIX, que exigia título de nobreza para oficiais, passando pela proibição de casamento aos sargentos, que também não podiam chegar a oficial, o que resultou numa revolta, na prisão, na exclusão e no exílio de 256 insubordinados, até a adoção de um processo seletivo racista. O sistema de cotas foi amplamente praticado. Um decreto de 1916, regulamentando a entrada na Escola Militar, "determinava que um terço das matrículas passasse a ser destinada aos candidatos que tivessem o curso integral dos colégios militares do Rio de Janeiro e de Porto Alegre". O regulamento de 1924 dispensava os alunos dos colégios militares do concurso de admissão à Escola Militar. Fernando Rodrigues é direto: desde 1924, o que se busca é impedir o ingresso de negros, judeus e muçulmanos.
Além de comunistas e filhos de estrangeiros. O auge da política racista chega com o Estado Novo e com o ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, a partir de 1937. Passa-se a regular até o número de dentes dos candidatos. Com menos de 20 dentes naturais não entrava. A nota reservada 1.101, de 28 de outubro de 1937, assinada por Dutra, estabelecia que não se aceitariam indivíduos com "estigmas ideológicos e raciais". Uma sindicância seria realizada na Escola Militar e nos colégios militares para ver se havia comunistas, judeus e estigmatizados raciais. Em nota de 1941, ele seria mais claro. Nada de gente com estigmas raciais e ideológicos. Pelo bem deles. Uau! Ou sofreriam constrangimentos. O regulamento para entrar na Escola Militar ou na Escola Preparatória de Cadetes exigia dos candidatos: "Não ser de cor. Não ser - nem seus pais - judeu, maometano ou ateu confesso". Pronto.
São coisas sabidas. Mas quando provadas assim ganham outra dimensão. Esse é o trabalho do historiador. Provar o que muitos insinuam, imaginam ou espalham. E estragar os prazeres de alguns, derrubando mitos ou estabelecendo a justa medida de certos acontecimentos. Eurico Gaspar Dutra foi um dos mais repugnantes auxiliares de Getúlio Vargas. Virou presidente da República. Valeria uma comparação dele com Góis Monteiro. Em termos de cotas, somos especialistas. Tivemos muita cota para brancos. Tudo pela modernidade e pela melhoria das nossas elites.
-----------------------------
*Sociólogo. Escritor. Cronista
Juremir Machado da Silva
Fonte: Correio do Povo online, 24/04/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário