sábado, 28 de maio de 2011

Lembranças do pai

CELSO PEDRO LUFT (1921-1995)
Imagem da Internet

Um dos maiores pensadores da Língua Portuguesa, Luft nasceu num 28 de maio há exatos 90 anos. Os depoimentos dos seus filhos: 

SUSANA LUFT*
Quando pequena, mais de uma vez ouvi de colegas: “Tua mãe é escritora, teu pai faz dicionários. Sobre o que vocês conversam?”. Eu achava engraçado mas a resposta saía na hora: “Ué, sobre coisas normais”.
Resposta óbvia! Eu queria parecer normal, como qualquer criança.
Hoje eu sei que a nossa conversa em casa não era naaada normal, mas aí é que estava a graça! No meio de “me ralei na prova de matemática” e “briguei com o fulano” – assuntos sobre os quais a mãe (a Lya, o furação da casa) era sempre convidada a opinar –, o pai, saindo da sua tranquilidade para se divertir um pouco, nos provocava com as palavras. Como “sutil” e “porcelana” podiam ser tão bonitas! E como “horrendo” e “ogro” pareciam feias... Como “flouxo” bem que merecia ser o correto, pois certamente parecia mais frouxo ainda! No fim tudo acabava em risada e atiçava nossa curiosidade sobre a língua. E nós, fedelhos, nos achávamos muito importantes porque afinal o nosso pai, o professor famoso, perguntava a nossa opinião sobre o assunto que ele mais amava.
De certa forma estas conversas continuam. Cada vez que uma das minhas filhas traz uma dúvida, eu, lendo com elas meus preferidos e indispensáveis Mini Luft, Gramática Resumida e Novo Guia Ortográfico (entre outros), volto a conversar com o meu pai.
--------------------
*POR SUSANA LUFT MÉDICA PEDIATRA. TRABALHA NOS HOSPITAIS MOINHOS DE VENTO E SANTO ANTÔNIO

ANDRÉ LUFT *
Lembranças do paiSempre me lembro do meu pai na sua posição clássica, sentado com um livro no colo, lendo e rabiscando, muito compenetrado. Quase tudo que passava nas mãos dele era revisado. Tenho em casa até hoje livros com as caprichadas correções feitas sempre a lápis com letra impecável.
Era um homem reservado e caseiro – desde cedo nos ensinou a disciplina e o autocontrole: “Quando um não quer, dois não brigam”, dizia quando nos engalfinhávamos entre irmãos. Nos raros momentos em que não lia ou estudava, gostava de regar ele mesmo o gramado da nossa casa. Logo depois que me formei em Agronomia, comentou intrigado que eu devia me especializar em sementes – o que na época nem me passava pela cabeça: “Como é que de algo minúsculo como a semente de uma maçã pode nascer uma árvore frondosa como a macieira?”.
Outra boa lembrança era uma pequena história (destas que vem com moral) que ele não se cansava de repetir. Contava sobre um escorpião que pede para atravessar um rio nas costas do elefante, prometendo que não irá ferroá-lo. Contudo, antes de chegarem ao outro lado, sua natureza peçonhenta o faz atacar e acabam os dois morrendo afogados. A natureza das pessoas impressionava o meu pai. “Era insopitável”, terminava ele a historinha. Foi quando eu entendi o significado da palavra.
------------------------
* POR ANDRÉ LUFT AGRÔNOMO, TRABALHA COM SEMENTES
CELSO PEDRO LUFT (1921-1995)

EDUARDO LUFT*

Lembro-me bem: eu correndo aflito e afirmando não saber nada de crase, depois de convidado em aula a decorar uma longa lista com as palavras precedidas ou não pelo famoso “a” com acento grave. Meu pai olhou surpreso, acostumado a ver nos filhos a demonstração concreta de sua visão da língua, manancial de uma gramática viva e imanente aos atos de fala, contraposta à forma morta dos manuais. “Mas há pouco pude constatar que não tinhas dúvida sobre crase, filho”. “Pois é, agora vejo que não sei mais nada”. Ele então se sentou calmo a meu lado, e tornou explícito o que eu ainda não sabia que sabia: a regra simples da crase.
Quantas vezes pude constatar depois o acerto de sua posição frente ao ensino da língua materna: o seu bom domínio advém não da leitura de manuais abstratos ou livros de gramática, mas do convívio constante com os verdadeiros mestres da língua, os escritores, os poetas, os cientistas e filósofos de escrita e pensamento sofisticados.
Lembro-me de meu pai em sua mesa, acompanhado das memoráveis caixas de sapato repletas de fichas de pesquisa, absorto na escrita e envolvido pela ampla biblioteca e, não menos importante, pela música. Dele aprendi o gosto pelos Adágios de Bach, por Albinoni, Pachelbel, Mozart e pelo deslumbrante Coro dos Peregrinos, de Wagner, que ele gostava de apreciar no mais profundo silêncio; além da admiração por Pessoa, Drummond, João Cabral e Quintana. É essa atmosfera que nos eleva e que meu pai gostaria de ver valorizada em nossas escolas.
Lembro ainda de nossos momentos na praia, da ida ao futebol, cuja paixão intensa também compartilhávamos, tão intensa que, julguei mais tarde, não valia o sofrimento... A surpresa ao ver o filho interessado por literatura, sua leitura de meus textos e suas sugestões sempre construtivas, jamais invasivas, seu gosto por meu interesse pela filosofia, o presente das obras completas de Hegel no original. É, pai, meu desvio pela filosofia não nos distanciou, ao contrário: é a mesma díade de coerência e liberdade que perpassa e integra música, literatura, filosofia e a gramática viva. Afinal, vejo o mundo como a morada de uma racionalidade imanente e evolutiva. Como a natureza, a língua é também um todo vivo e em evolução, um bicho astuto, que ao menor rumor de folhas foge ágil e deixa a nós, os caçadores de certezas, diante de um enigma.
Que a cada instante o pensamento se renove e se permita rever a vida, a nova vida que a nós se abre, “como uma pergunta do silêncio ao dia” *.
----------------------------
*POR EDUARDO LUFT DOUTOR EM FILOSOFIA PELA PUC E PELA UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG, COM TESE SOBRE HEGEL. PROFESSOR DA PUCRS


* Trecho de poema inédito de Luft que o Cultura reproduz na contracapa

Inédito: “Rosa da Manhã”
O poema foi cedido pela família e tirado de um caderno que continha, na capa, a inscrição “Poemas, Celso Pedro Lima”. “Este era o pseudôimo que o pai usava quando marista”, explica Eduardo Luft. Foi escrito em 1952. Abaixo, a transcriçã:
Rosa da Manhã

É uma pergunta do silêncio ao dia,
se a claridade apenas se espreguiça
sob as árvores, campo e vale fora:
tão grácil à janela reclinada.

Ao rosto que primeiro a recolhê-la
deposita-a vermelha nas retinas,
simula um beijo nunca recebido,
uma carícia em sêda desfolhada.

Será mais do que o Sol, já quando o Dia
caminhar claro por jardins e searas,
será mais do que a Lua, quando a Noite
pular pela janela, à voz do môcho.

A luz e as formas lhe pertencem, que enche
de um perfumado som de antigo templo.

-------------------
Fonte: Reportagem completa em  ZH CULTURA on line, 28/05/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário