sábado, 25 de junho de 2011

Qual é o seu segredo?!

Antonio Ozaí da Silva*


O meu amigo Walterego, ausente nos últimos tempos, resolveu dar o ar da sua graça e, sutilmente, comentou sobre a epígrafe do blog:

“Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos amigos.
Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio,
e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que
o homem tem medo de desvendar
até a si próprio…”
(Dostoievski)

Acostumei-me tanto a estas palavras que elas já passavam despercebidas. Nem recordava mais de qual obra dostoievskiana havia citado. O autor russo é um dos meus preferidos e li vários dos seus livros. Pesquisei nos meus arquivos e, então, encontrei: a citação é de Memórias do subsolo.[1] Relendo as minhas anotações compreendo melhor seu significado.
Embora sutil, o comentário do amigo Walterego não foi gratuito. O que ele delicadamente põe em relevo são os meus “segredos”. Quem não tem segredos que não ousa revelar aos amigos e nem a si mesmo? Quanto mais passa o tempo, mais recordações se alojam na mente. Há lembranças que guardamos com carinho e como um tesouro; outras são capazes de abrir feridas que imaginávamos cicatrizadas. São lembranças do subsolo que parecem deletadas, mas mantêm-se latentes em algum lugar dos subterrâneos do inconsciente, ainda que blindadas por uma espécie de proteção cerebral.
A conversa com o amigo Walterego instiga o resgate das reminiscências, fazendo-as emergir do esquecimento. Mas também carrega o risco de fender a blindagem e romper o dique protetor das lembranças represadas no passado. De qualquer forma, este não o espaço mais apropriado para expor “segredos”. É melhor, e mais prudente, se manter fiel à epígrafe. Talvez até seja demasiado ousado trazer essa reflexão à tona. Mérito do amigo Walterego por estimulá-la!
Por outro lado, é preciso contextualizar a epígrafe dostoievskiana. Memórias do subsolo, escrito à cabeceira de morte da sua primeira esposa, Maria Dmitrievna, e publicado originalmente em 1864, na revista literária Epokha, é um texto perigoso. O personagem-narrador é alguém solitário e angustiado: “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Ceio que sofro do fígado”.[2] É um pessimista, céptico. Sua crítica mordaz mira tudo e todos. Ele duvida da ciência e das superstições religiosas, da razão e da desrazão, mas, sobretudo, investe contra si mesmo e a própria consciência. Seu cepticismo é profundo!
Em minhas notas de leitura registro – e não recordava deste detalhe – que li parte da obra no Hospital, ao lado da minha filha Juliana – que se recuperava de uma cirurgia.[3] Imagino que a minha capacidade de concentração estava fragilizada. Porém, me conheço suficientemente para saber que não me identifico com o personagem-narrador in totum. Não obstante, sei que não saí ileso da leitura. Escolhi a epígrafe porque me parecia que cabia bem num blog sem objetivo academicista e com um estilo lingüístico intimista e menos formalista. Ao reler minhas anotações, vejo que a minha identificação tem mais a ver com a tomada de consciência sobre o real e o sofrimento que isto acarreta: “Juro-vos senhores que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa. Para uso do cotidiano seria mais do que suficiente a consciência humana comum…”[4]
A consciência de si e da realidade na qual estamos inseridos nos faz sofrer. Talvez seja melhor ignorar, desconhecer, bastar-se com a “consciência humana comum”. No entanto, há um liame entre os vários níveis de consciência: os segredos. Todos temos os nossos segredos, ainda que sejamos seres completamente alienados. Quais são os seus segredos? É do humano que se trata. Eis a beleza das palavras de Dostoievski.
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* Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); editor da Revista Espaço Acadêmico, Acta Scientiarum. Human and Social Sciences e Revista Urutágua - In leituras, reflexões do quotidiano
[1] Ver DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo e outros escritos. São Paulo, Editora Paulicéia 1992, p.99. A obra é composta por três textos: Notas de Inverno sobre Impressões de Verão [inverno de 1862/63]; Memórias do subsolo [janeiro a maio de 1864]; e, O crocodilo [meados a outubro de 1864].

[2] Idem, p.65.
[3] Foi uma das minhas leituras na fase de doutoramento. A literatura ajudou-me a superar as dificuldades inerentes ao trabalho de pesquisar e escrever a tese.
[4] Idem, p.68.

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