sábado, 18 de junho de 2011

Um ano sem Saramago

Texto de Pilar del Río

ZÉ SARAMAGO NO ERA UN NIÑO VAGO
JUGABA SOLO NO CON LOS DEMÁS
Y CON EL TIEMPO SE VOLVIÓ UN GRAN MAGO
QUE HACE QUE PENSEMOS MÁS
Estas palavras, cantadas no México por Sofía Álvarez, grande actriz e contista, diante de cerca de duas mil crianças, foi o momento mágico do ano. Perguntava Sofía como era Saramago e as crianças respondiam que era «um mago que nos pôs a pensar». Os miúdos, que haviam visto a curta metragem A Maior Flor do Mundo e lido O Conto da Ilha Desconhecida, estavam no grande auditório, convidados pela Feira do Livro de Guadalajara, que também realizou sessões especiais sobre o escritor português e apresentou um livro onde homens e mulheres das letras elegeram o seu Saramago preferido e explicaram as razões da sua opção. «Porque soa bendito, como o mar», disse Ángeles Mastretta, que partilhava páginas com escritores dos dois lados do oceano. Era Novembro, era México, era a Feira que Saramago tanto visitou a que o recordava com esmero. Como já tinham feito outros países.
O primeiro ano sem Saramago começou às 11.30 do dia 18 de Junho de 2010, quando os médicos Gracia Lanzas e Domingo Guzmán se olharam e ela, após um leve assentimento do companheiro, pronunciou as palavras que ninguém na casa queria ouvir: «Hora da morte, 11 e 30». Aí começou a vida sem Saramago, embora Saramago continuasse a ser o centro de todos os passos, de todas as palavras e de todos os abraços, o centro do mundo para aqueles que já nada podiam fazer, nem acrescentar uma palavra, nem mostrar o sorriso que ficou adiado, nem sentir o apertar de mãos, gesto impossível, Saramago havia morrido e essa palavra – morte – é definitiva.
Nesse dia, a essa hora, começou também uma viagem diferente para os que haviam convivido com Saramago mas, apesar do terrível peso da realidade, que esmaga e de que maneira, os que rodeavam Saramago levantaram a cabeça, deixaram que as lágrimas corressem por dentro e fizeram o que estava combinado: viver também pelo ausente, tê-lo sempre no coração, no sangue, nos livros, nas conversas e nos brindes. Não morrerá de todo quem está tão presente na memória, disseram-se mutuamente e começaram a contar o tempo.
Um ano já sem Saramago. Como é possível, perguntar-se-ão alguns, se continua a publicar livros, se está nas conversas dos analistas políticos, se os jovens saem à rua com as suas frases escritas em cartazes ou em t-shirts, se há concertos de rock onde o aplaudem ou se organizam outros de música erudita em seu nome? Que estranha ausência é essa? Mas é estranha apenas para quem não compreendera o espírito transgressor de José Saramago, homem tímido e retraído que, no entanto, era audaz nas suas abordagens vitais, literárias e intelectuais, destemido até, que nunca baixou a cabeça, que sempre seguiu o seu caminho sem se preocupar com costumes ou modas, sem medir as consequências dos seus actos desde que estes não afectassem terceiros porque o respeito pelo outro, tratando-se de Saramago, era um dado adquirido. Sim, era um transgressor de todas as normas e convenções, por isso também o seu funeral seria diferente, porque diferente foi a sua vida.
O avião que transladaria o corpo de José Saramago chegou a Lanzarote perto da meia-noite do dia 18 para sair no dia seguinte de manhã, já com a sua carga singular, o caixão e os amigos mais próximos do escritor. Para se despedirem dele, a Fundação César Manrique convidou os ilhéus a que deixassem as suas casas e o trabalho, descessem à rua e lessem em voz alta fragmentos dos livros que Saramago escreveu em Lanzarote, de modo a que a última saída da ilha fosse acompanhada pelo eco da sua voz. Depois, quando o avião aterrou em Lisboa, outra surpresa aconteceu: pessoas erguendo livros, levantando-os do chão como Saramago havia levantado a vida de tantas pessoas humildes nas suas diversas ficções e, sobretudo, na sua escolha dilecta. Após a cerimónia na Câmara Municipal, o cortejo partiu para o cemitério. Ali foi o adeus definitivo, um grupo de pessoas dentro da sala do crematório celebrou o facto de ter partilhado a intimidade de um homem grande, enquanto lá fora havia um mar de livros e de cravos vermelhos, dois símbolos que engrandecem quem homenageia e quem é homenageado.
"...as cinzas de José Saramago serão depositadas
 diante do rio, junto à Casa dos Bicos,
frente ao lugar que iria ser o seu escritório
e que não chegou a ver terminado. (...)
Haverá uma oliveira de Azinhaga,
a terra natal de Saramago, uma pedra em que se
lerá o epitáfio que Saramago escreveu
para Baltasar no Memorial do Convento:
 «Mas não subiu para as estrelas se à terra pertencia»
e um banco, para que as pessoas possam sentar-se,
ver passar os barcos que Saramago não verá,
sentir a sua presença, ler umas páginas,
talvez um poema, e saber que nem
tudo está perdido."




Horas mais tarde, no avião que levava a Madrid um grupo de amigos que viajaram até Lisboa para se despedirem de Saramago, tomou-se uma decisão que foi cumprida sem falhas: seguir o ritual estabelecido em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Se a morte, segundo Saramago nesse livro, não é definitiva até que decorram nove meses, que são os que se levam para nascer, todos os dias 18, até Março, haveria que realizar encontros de celebração em lugares vários para ler Saramago e brindar pelo homem que deu personalidade à sua época. Em Granada cantaram-se poemas, ouviu-se no meio da neve o som de instrumentos renascentistas enquanto uma voz lia o discurso do Prémio Nobel: «O homem mais sábio que conheci não sabia ler nem escrever», e por uns instantes neto e avô assomaram por entre as oliveiras. Em Madrid apresentou-se o livro Saramago nas Suas Palavras, de Fernando Gómez Aguilera, e, para fazer suas estas palavras, personalidades do mundo da cultura, da universidade, da justiça, escritores e jornalistas acudiram ao encontro. O juiz Garzón, a actriz Aitana Sánchez Gijón, o compositor Emilio Aragón, o ex-presidente do Parlamento Europeu Enrique Barón, a pintora Sofía Gandarias e Pilar Manjón, porta-voz das vítimas do atentado terrorista de 11 de Março em Madrid, sublinharam com as suas vozes o que ao longo do tempo Saramago vinha dizendo. Seguiu-se Barcelona, com Paco Ibañez cantando. E em Lisboa, a cada dia 18, pela tarde, junto à Casa dos Bicos, leu-se e agradeceu-se a fortuna de ser compatriota de Saramago. Na Feira do Livro de Frankfurt e em Turim tiveram também lugar sessões celebrando a sua memória. A Feira de Sevilha foi dedicada integralmente ao autor de A Viagem do Elefante, livro escolhido para assinalar o quinquagésimo aniversário da Fundação Santillana, numa edição especial ilustrada por Manuel Estrada, e apresentada em Madrid com todas as honras.
E no Brasil: «Quantas vezes pode um homem enterrar o pai?», perguntou-se o editor brasileiro, e não pôde continuar nem responder a si mesmo porque as lágrimas lhe roubaram a voz e apenas os aplausos das pessoas encheram o tempo. Até que começou o espectáculo «Vozes de Mulher na Obra de Saramago», mulheres conversando para suster o mundo na sua órbita, um homem dizendo que assume essas vozes, Chico Buarque de seu nome, e esse mesmo espectáculo foi representado no Teatro das Belas Artes da Cidade do México, e será oferecido a 18 de Junho por uma cadeia de televisão nacional, precisamente quando em Portugal estiver a ser exibido José e Pilar, o filme que conta os últimos anos de Saramago, a sua relação com o mundo, as ideias que o preocupavam, o trabalho como motor diário, e sempre pensar, pensar, pensar... O filme mostra o que apenas os muito íntimos sabiam do autor de Memorial do Convento, do Evangelho segundo Jesus Cristo e de Caim. E dos dois livros de textos do blog, a sua bússola pessoal: «O blog vai iluminando o caminho do autor», dizia Saramago.
Neste primeiro ano sem Saramago continuaram a publicar-se os seus livros de acordo com o calendário estabelecido quando era vivo e falava com a sua agente e com os editores mais próximos. Anuncia-se para o Outono a publicação do seu segundo livro de juventude, Clarabóia, esse que dormiu o sono dos justos quase quarenta anos sem que Saramago recebesse resposta alguma e que, quando o jovem que o escreveu era já um homem maduro e havia publicado grandes livros, a editora quis dá-lo à estampa. Saramago disse que enquanto vivesse não seria publicado embora tivesse consciência de que o livro veria a luz do dia, porque é um presente que os leitores merecem. Aparecerão também em breve as páginas que tinha escritas de um romance complexo, tão difícil como necessário: Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, um verso de Gil Vicente, uma outra forma que Saramago encontrou de ser a ponte entre os clássicos e os leitores contemporâneos, assim o seu Camões em Que Farei com Este Livro?, ou nas contínuas referências ao Padre António Vieira, a Pessoa, Almeida Garrett ou Eça, o inventor do romance moderno. Ou Raúl Brandão, Almada Negreiros, ou os seus contemporâneos, Jorge de Sena, Rodrigues Miguéis entre outros, autores de que a Fundação deve cuidar porque também nasceu para isto.
O ano sem Saramago foi especial para a Fundação que leva o seu nome. Ainda que não tenha nascido para contemplar o seu fundador, como ele mesmo deixou escrito na sua declaração de princípios, não pôde senão dedicar o seu tempo a agradecer manifestações de pesar, responder às mais diversas solicitações, partilhar demonstrações de afecto, manter a sua agenda apesar do desconcerto da morte. Por estes dias de Junho será anunciado o vencedor do Prémio de Fotografia «Retratar um Livro», fórmula simples de recuperar livros para a leitura, aplicando-lhes técnicas vanguardistas. Nome de Guerra, de Almada Negreiros, foi o livro proposto para a primeira edição do prémio. Seguir-se-á A Escola do Paraíso, de Rodrigues Miguéis, livro que nas palavras de Saramago deveria estudar-se nas escolas em vez do seu Memorial, porque os alunos conhecer-se-ão melhor ao saber de onde vêm, de que mundo, de que arte.
A Fundação compilou textos escritos por todo o mundo por altura de 18 de Junho passado, que serão editados pela Caminho com o título Palavras para José Saramago. A leitura desses textos dá uma imagem do que foi para a cultura, e não só, a morte de Saramago. Aí se verá o respeito – à excepção do órgão oficial do Vaticano – com que meios de comunicação de diferentes tendências acolheram a notícia porque, de acordo ou não com os seus princípios políticos, sabiam que havia morrido um homem honesto, «A voz dos sem voz», titulou um jornal basco. O livro, que sairá no dia 18, é também uma forma de agradecer: devolver os textos que nasceram para jornais e revistas em forma de livro é dar-lhes uma nova vida e é dizer aos seus autores que foram lidos, entendidos e acolhidos no coração.
Ao longo deste ano multiplicaram-se os actos de homenagem, as leituras, os concertos. O programa encerrará no Grande Auditório do CCB no dia 19 pela tarde, quando, por iniciativa da ministra da Cultura, se interpretará As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de Haydn, com sete textos de José Saramago, escritos a convite de Jordi Savall e com concepção de cena de Teresa Villaverde, em estreia absoluta em Portugal. E na noite do dia 18, a SIC exibirá o filme José e Pilar que, à mesma hora, estará a ser projectado na Cinemateca Portuguesa, com a presença do realizador. E antes, ai!, as cinzas de José Saramago serão depositadas diante do rio, junto à Casa dos Bicos, frente ao lugar que iria ser o seu escritório e que não chegou a ver terminado. Outros o verão por ele, esse é o compromisso. Haverá uma oliveira de Azinhaga, a terra natal de Saramago, uma pedra em que se lerá o epitáfio que Saramago escreveu para Baltasar no Memorial do Convento: «Mas não subiu para as estrelas se à terra pertencia» e um banco, para que as pessoas possam sentar-se, ver passar os barcos que Saramago não verá, sentir a sua presença, ler umas páginas, talvez um poema, e saber que nem tudo está perdido.
Neste ano duro e agitado, de crise económica e de manifestações de jovens em Portugal e em Espanha, em que cidadãos de países do Norte de África se sublevaram contra sátrapas ou contra a economia de mercado que provoca o pânico nas pessoas e nas famílias, sentiu-se de forma especial a ausência de Saramago. Compensada, em parte, por leituras dos seus textos, os do Blog, os de Saramago nas Suas Palavras, os de Ensaio sobre a Lucidez, sobretudo. «Que diria Saramago sobre isto?», foi uma pergunta constante, embora ninguém possa interpretar Saramago, dizer se estaria eufórico, se sentiria medo ou se a esperança andaria no seu coração. Não o sabemos, não poderemos sabê-lo nunca. A única coisa que permanece clara são os seus escritos, também a sua biblioteca e a sua casa em Lanzarote, abertas a visita pública todas as manhãs, porque esse legado é demasiado grande para que não seja partilhado.
E assim, lendo os seus livros e recordando vivências decorreu um ano de ausências íntimas e de presença pública. Aproxima-se o aniversário do português que veio ao mundo para pôr nele um pouco de harmonia. E conseguiu. Por isso nestes dias o recordamos com a força de um amor primeiro.
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Texto publicado no suplemento Atual do jornal Expresso de 04 de Junho de 2011
OBS.: Português de Portugal

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