quinta-feira, 28 de julho de 2011

A cultura light

 Irmão Afonso Murad*

Imagem da Internet

É possível formar para compromissos duradouros numa cultura light? Em que condições e com que grau de certeza? Que atitudes e estruturas são necessárias para isso acontecer? Estas perguntas são decisivas para a educação e a evangelização.
A rigor, não existe uma cultura light enquanto sistema elaborado de significações, configurado por um grupo humano e identificável a partir de matrizes étnicas, sociais, de gênero ou geracional. O termo light serve mais como categoria, aproximação conceitual. Explica uma forma de conceber o mundo e de se comportar presente em diferentes grupos na sociedade contemporânea. A palavra light é uma imagem, uma analogia que reúne características do que se convencionou chamar de cultura ‘pós-moderna’ ou ‘modernidade líquida’, conforme o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Light tem, em inglês, muitos sentidos. O primeiro é o substantivo ‘luz’. Daí deriva o adjetivo que significa ‘claro’, por exemplo, light blue (azul claro). O termo ganhou importância e novo significado devido à associação com alimentos de baixo teor calórico. Basta entrar no supermercado ou na padaria para encontrar vários produtos light, com redução de no mínimo 25% de determinado nutriente que fornece energia (carboidrato, gordura e proteína), em comparação com o alimento convencional. O diet, por sua vez, diz respeito a alimentos e bebidas sem açúcar ou gordura, destinados a quem tem alguma limitação na saúde, como diabete ou colesterol elevado. As pessoas consomem cada vez mais produtos lights e diets para manter o peso e conservar o padrão estético que se determinou como ideal. Alimentam a ilusão de que podem comer e beber à vontade, fruir do prazer (sabores e odores), sem pagar o preço de engordar. Soa como uma solução mágica!

"O ambiente de trabalho, devido ao clima
de competição no mercado, é tão estressante
e exigente, que, como forma de compensação e alívio,
as pessoas tendem a sonhar com
a situação oposta, na qual possam provar a leveza,
a ausência de cobranças,
a fruição e o prazer.
Mesmo que isso não seja real para a maioria,
permanece como desejo
e ideal."



No imaginário atual, light se associa a leveza, não somente física, mas também psicológica e comportamental. A pessoa light rejeita a rigidez, ou seja, aquilo que é duro (hard) e pesado (heavy). Ela está no âmbito do que é seguro, sem riscos. Segundo o escritor Wilmar L. Barth, no homem light “tudo está sem calorias, sem gosto ou interesse. A essência das coisas não importa, só é quente o superficial. A vida pode ser comparada a um coquetel, onde tudo pode ser experimentado, mas tudo está desvalorizado. Centrado em aproveitar bem o momento e consumir, em se interessar por tudo e, ao mesmo tempo, por não se comprometer com nada, o homem light ajeita tudo. Para ele, tudo é transitório, passageiro. Até a democracia e a vida conjugal se tornam lights. O lema é não exigir muito e alcançar tolerância absoluta. Não existem desafios, nem metas históricas e grandes ideais, nem esforço ou luta contra si próprio. Como não há critérios sólidos, o homem light é superficial e aceita tudo. Geralmente não tem projeto de vida e lhe interessa possuir e consumir loucamente”. Fabrica sua verdade de acordo com preferências pessoais, escolhe o que gosta e rejeita o que não lhe apetece.
Para evitar análises pessimistas é importante ressaltar alguns traços dessa cultura. São ambivalentes e talvez o problema seja a forma unilateral como se manifestam. Há um contexto que lhes deu origem e favorece sua manifestação. Por exemplo, na sociedade contemporânea, a luta pela sobrevivência devora grande parte da energia vital das pessoas. Cada vez mais, não se tem segurança do futuro profissional. O ambiente de trabalho, devido ao clima de competição no mercado, é tão estressante e exigente, que, como forma de compensação e alívio, as pessoas tendem a sonhar com a situação oposta, na qual possam provar a leveza, a ausência de cobranças, a fruição e o prazer. Mesmo que isso não seja real para a maioria, permanece como desejo e ideal.
Outro fato elucidativo: na sociedade midiática da imagem e da simulação só existe o que aparece. O estético saiu das Igrejas antigas, dos museus e das galerias de arte e invadiu o cotidiano. Isso é bom, pois significou uma forma de democratização. É compreensível que as pessoas estejam mais sensíveis ao aparente e se extasiem com o belo. A questão é quando o estético substitui o ético. Passa a ser considerado bom aquilo que é produzido de forma artificial como beleza a serviço do consumo.

Valores da cultura light

Com espírito de fé, descobrem-se nos ‘sinais dos tempos’ do homem e da mulher light não somente as ameaças, mas também oportunidades para a humanização e o Reino de Deus. Que valores estão implícitos na cultura light e podem ser positivos se forem desenvolvidos em perspectiva humanizadora e comunitária, são voltados para a evolução da humanidade e compreendidos de forma coletiva, para além do indivíduo? Cito alguns:

Leveza: cultivar a gratuidade, a alegria, o contentamento e o senso de humor como elementos decisivos da vida, em contraposição ao pessimismo e ao perfeccionismo. É um contraponto às exigências demasiadas do mercado, baseado na competição e nos resultados.
Flexibilidade: a pessoa aprende a relativizar o que antes parecia intocável e inquestionável. Critica a rigidez dos códigos de comportamento, em especial das religiões tradicionais, e descobre o valor do diálogo.
Cotidianidade: desejo de simplesmente viver o hoje, sem excesso de preocupação com o futuro.
Estética: sensibilidade ao belo. Desde as embalagens até o corpo humano, contemplando também o design da casa e da cidade. Abre-se oportunidade de nova síntese entre bondade e beleza se a aparência é uma porta de entrada para o ser que se manifesta.
Corporeidade: respeito e valorização do corpo. Critica a violência física contra os fracos. Após séculos de negação, abre-se a possibilidade de uma visão unificadora de corpo-espírito. O corpo é expressão carnal da pessoa e de seu mistério.
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* Teólogo, ambientalista e escritor
Fonte: Jornal Opinião Online Edição 1154 - 25 a 31 de julho de 2011.

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