domingo, 24 de julho de 2011

'... é assim que acontece a bondade...'

Rubem Alves*
"Se te perguntarem quem era essa que às areias e gelos quis ensinar a primavera...": é assim que Cecília Meireles inicia um dos seus poemas. Ensinar a primavera às areias e gelos é coisa difícil. Gelos e areias nada sabem sobre primaveras... Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. Mas como ensiná-la?
Será possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? E poderia ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? Há coisas que não podem ser ensinadas. Elas estão além das palavras. Os cientistas, filósofos e professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que podem ser ditas. Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo: acho possível desenvolver uma psicologia da solidariedade, uma sociologia da solidariedade, uma ética da solidariedade... Mas saberes científicos sobre a solidariedade não ensinam a solidariedade, da mesma forma como a crítica da música e da pintura não ensina a beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a beleza,, é inefável.
Palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado. Ele só existe em voo. Engaiolados, esses pássaros morrem.
A beleza é um desses pássaros. A beleza está além das palavras. Walt Whitman tinha consciência disso quando disse: "Sermões e lógicas jamais convencem. O peso da noite cala bem mais fundo em minha alma..." Não é possível fazer uma prova colegial sobre a beleza porque ela não é um  conhecimento. E nem é possível comandar a emoção diante da beleza. Somente atos podem ser comandados. "Ordinário! Marche!", o sargento ordena. Os recrutas obedecem. Marcham. À ordem segue-se o ato. Mas sentimentos não podem ser comandados. Não posso ordenar que alguém sinta a beleza que estou sentindo.
O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora: astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.
Mas há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram dentro do corpo. Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera...
Sim, sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes - lembre-se da estória da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também não brotar. Tudo depende... As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas...
Uma dessas sementes é a "solidariedade". A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora ela poderia ser ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente.
Veja os ipês floridos! Nasceram de sementes. Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, para que eles floresçam. Seu florescer será um simples transbordar natural da sua verdade.
A solidariedade é como o ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: "Seja solidário!" A solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes transbordam...
Disse que a solidariedade é um sentimento. Sentimento que perturba nossos próprios sentimentos. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas no semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho das suas balas. Eu e a criança - dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz sentir aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável, esse sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha vindo, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre. Expande-se. Ela está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicções religiosas e nem por um mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é a forma visível do amor. Pela magia do sentimento de solidariedade o meu corpo passa a ser morada do outro. É assim que acontece a bondade.
Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primaveras a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias!
"O menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes..."
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* Teólogo. Escritor. Cronista do Correio Popular
Fonte: Correio Popular on line, 24/07/2011
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