sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Entre profetas, demógrafos e poetas

Eliana Cardoso*

Para provar um teorema de finanças, Rudi me ensinou que era preciso visualizar no infinito o ponto terminal do problema e resolvê-lo a partir daí. Assim aprendi que, de frente para trás, a solução de uma dificuldade se desenha no sentido inverso do tempo. Desde então, passei a aplicar esse método às mais diversas áreas. Por exemplo. Se você me perguntasse o que fazer da vida, eu lhe responderia que você precisa saber onde quer estar em 20 anos. De lá, você imaginaria cada passo necessário para voltar ao presente, deixando então bem delineado o caminho a seguir a partir de hoje. O presente é a consequência do futuro.
Se assim é, por que reluto em vestir a roupa do profeta? Fácil. Desconfio que dons proféticos e paranoia caminhem de mãos dadas. Vocês hão de concordar comigo que profetas são gente estranha.
Elias, que viveu no tempo do rei Acab e da rainha Jezabel, era um selvagem: fugiu para o mato e vivia de alimento carregado por corvos.
Ezequiel era um maluco: chamado a profetizar durante o exílio do povo judeu na Babilônia, lançou a pedra fundamental do movimento apocalíptico, cujos adeptos continuam a crescer ainda no mundo de hoje.
E Jeremias sofria de um mal que atualmente se chama de personalidade bipolar depressiva e ficou conhecido como o profeta chorão.
O mais simpático entre todos que seguiram essa profissão milenar é um profeta menor: Jonas. Mal-humorado, covarde, petulante e conhecedor da experiência de seus predecessores, Jonas rechaçou a ansiedade profética de religiosos, cientistas e malucos. Quando Deus o mandou anunciar aos habitantes de Nínive que pretendia destruir a cidade e assim punir seus habitantes, recusou-se. Ele sabia que se o fizesse uma de duas coisas iria acontecer. Ou Nínive iria ignorá-lo. Ou o levaria a sério. Se o ignorasse, seria destruída, tornando sua missão inútil. Se o levasse a sério, seus habitantes tornar-se-iam bondosos e Deus não teria motivos para destruir o lugar. Sem destruição, ficaria provado que ele era um falso profeta. Quem quer fazer profecias que não se cumprem e ficar desmoralizado?
Tenho mais razões para recusar o papel de profeta. É difícil pensar no Futuro com F maiúsculo, quando nossa atenção está voltada para as turbulências do mercado nos dias que correm marcados pela volatilidade e incerteza. A mente se desvia de coisas mais sérias (como o aquecimento global e o futuro dos sorvetes de avelãs) quando o noticiário nos atormenta com a ameaça de recessão nos Estados Unidos, a crise que se prolonga há décadas no Japão e mais outra na Europa, onde ainda não se inventou solução duradoura para a fragilidade de bancos e governos impotentes.
Impossível argumentar que os reflexos no Brasil não serão dolorosos, mas não há razão para gemidos, ranger de dentes e jeremiadas. Com certeza nossa gente vive melhor hoje do que na época de Ezequiel, de Jonas ou do que cem anos atrás.
De qualquer maneira, concentre-se. Você não pode perder o espetáculo do mundo em transformação. Entre 1965 e 2004, as economias dos países mais ricos do mundo (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) responderam em média por 65% do PIB global. Durante aqueles 40 anos, essa participação se manteve quase constante, variando anualmente em cerca de três pontos percentuais para cima ou para baixo. Mas, em 2007, surpresa! A participação dos países do G7 no PIB mundial caíra para 52%, tendo encolhido 13 pontos percentuais.
Parte da mudança derivava do aumento do preço das commodities e da consequente apreciação cambial dos países que as exportam. Outra parte refletia fenômeno de convergência de 28 países emergentes, que vinham crescendo acima de 3,5% ao ano nos 25 anos anteriores. A crise nos países ricos vem acelerando esse processo de convergência. A distribuição do poder no mundo pode mudar.
Quais são as implicações para o Brasil? É possível pensar em três cenários. O primeiro é: mais do mesmo. A tradição de dependência dos EUA é tão longa que parece imutável.
Os EUA levaram todo o século XIX construindo sua hegemonia nas Américas antes de conquistá-la no século XX. Agora, entretanto, essa hegemonia se encontra em questão. A onda de globalização, que começou antes da Primeira Guerra Mundial, ganhou força a partir de 1970 e acelerou-se no fim do século XX. À medida que a onda ganhava corpo, a distância geográfica entre os países começou a perder importância. A dominância americana no hemisfério ocidental está chegando ao fim.
A presença da China no Brasil aumentou de forma vertiginosa nos últimos dez anos. O segundo cenário seria uma variação do primeiro. A diferença estaria na substituição do poder americano pelo poder chinês. Assim, nosso crescimento continuaria amarrado ao comportamento do preço das commodities.
O terceiro cenário, mais otimista, depende da possibilidade de que os brasileiros se voltem para o futuro. Shakespeare sabia disso. Na "Tempestade", Próspero, um intelectual com poderes mágicos, bate de frente com Freud. Ao contrário do médico, sabe que o sentido de sua vida não depende do passado, mas do porvir. Por isso ele joga fora o livro de mágicas que não poderia ajudá-lo a governar. Governa bem quem o faz com os olhos no futuro e os pés no chão.
"A desaceleração da taxa de crescimento
 da população em idade ativa torna
 mais inelástica a curva de oferta de trabalho
e impõe o aumento da produtividade
como condição fundamental para
a competitividade da indústria.
O caminho é mais e melhor educação.
Cada um de nós terá de encontrar
 uma forma de contribuir
para esse processo."

Para pensar no futuro, temos de começar pela demografia. O Censo 2010 confirmou que o Brasil está passando por uma substancial transformação demográfica. Em 1990, a taxa de fecundidade era de 2,8 filhos por mulher, mas, em 2010, essa taxa já havia caído para 1,9, número bem abaixo da taxa de reposição populacional de 2,1. Projeções indicam que a taxa de fecundidade do Brasil estará entre as menores do mundo antes do fim desta década.
Os países ricos já chegaram a um platô de pouco mais de duas pessoas em idade de trabalho por dependente e esse indicador deve despencar para 1,36 até 2050, ameaçando o dividendo demográfico que esses países gozaram nas últimas décadas. Além disso, espera-se marcada expansão na proporção de pessoas idosas: há aumento da longevidade e continuidade da baixa natalidade.
O desempenho econômico no contexto do envelhecimento da população, território ainda desconhecido, gera pelo menos duas preocupações. Os sistemas de assistência médica e aposentadoria por regime de repartição são sustentáveis? Aqui, políticas como o aumento da idade para aposentadoria e a obrigatoriedade das contribuições se fazem necessárias.
A segunda preocupação é com as implicações para o crescimento econômico das mudanças na força de trabalho. Teremos de buscar maior eficiência e conquistá-la com a melhoria da educação. Com a redução da parcela da população abaixo de 15 anos, os recursos per capita aplicados na educação tendem a aumentar. Mas será preciso melhor gestão desses recursos para aprimorar a qualidade da escola.
Num trabalho recente, Jorge Arbache argumenta que a transformação demográfica já está afetando a competitividade internacional da economia brasileira e que seus efeitos se tornarão mais intensos nos próximos anos. A desaceleração da taxa de crescimento da população em idade ativa torna mais inelástica a curva de oferta de trabalho e impõe o aumento da produtividade como condição fundamental para a competitividade da indústria. O caminho é mais e melhor educação. Cada um de nós terá de encontrar uma forma de contribuir para esse processo.
Jorge Luis Borges - que correu o mundo na última década de sua vida - escreveu, ao voltar do Egito, que, ao se aproximar de uma pirâmide, se abaixou e apanhou um punhado de areia. Um pouco adiante, deixou-a escorrer de seus dedos e disse baixinho: "Mudei o Saara".
As palavras de Borges captam a dimensão da ação humana diante da imensidão do universo. Em relação ao infinito, não existe diferença entre uma pirâmide e um montinho de areia. Um dia, até as pirâmides deixarão de existir. Enquanto isso, cada um de nós carrega seu grão de areia e transforma o mundo.
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* Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). http://www.elianacardoso.com/
Fonte: Valor Econôminco on line, 23/09/2011

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