segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Francis Fukuyama - Entrevista

UM CAMINHO AINDA LONGO

Francis Fukuyama, o cultuado autor de O Fim da História: se optar por
 mimetizar o modelo chinês, o Brasil pode acabar voltando no tempo
Foram muitos os avanços do Brasil
nos últimos anos, diz
o sociólogo Francis Fukuyama.
Mas o país ainda não aprendeu
a lição mais importante – sem um equilíbrio
entre o poder do governo e a sociedade,
os momentos de euforia
têm fôlego curto.
É no terreno da política, e não no da economia, diz o filósofo americano Francis Fukuyama, que são construídas as bases de uma sociedade moderna. A mensagem do autor de o FIM DA HISTÓRIA, o polêmico livro que virou uma espécie de bíblia liberal, serve de alerta para o Brasil. O crescimento econômico dos últimos anos é bem-vindo, especialmente ante a letargia reinante nos país por décadas. Mas as cenas recorrentes de descalabro no front político vão cobrar um preço alto do país – e parece que ainda não acordamos para isso Sem uma sociedade forte, diz Fukuyma, que saiba manter os políticos sob controle e que cobre resultados do governo, é difícil acreditar em prosperidade no longo prazo.

O BRASIL PARECE ESTAR NA MODA ATUALMENTE – RECEBEMOS QUANTIDADE RECORDE DE INVESTIMENTO, O REAL SE FORTALECE, A ECONOMIA CONTINUA A CRESCER NUM MOMENTO DE TURBULÊNCIA GLOBAL. O BRASIL CHEGOU LÁ, AFINAL?
Assim como tantos outros, eu também estou muito impressionado com o desempenho brasileiro dos últimos anos. Todos nós já escutamos a velha piada sobre o Brasil como o país do futuro – e o futuro, claro, é algo que nunca chega. Pois bem, a piada perdeu a razão de ser. Os dois últimos presidentes completaram mandatos somados de oito anos cada um com muitas realizações. E a presidente Dilma Rousseff parece disposta a dar sequência ao trabalho feito até aqui. Essa é a parte boa. O lado menos brilhante diz respeito aos fundamentos para que esse progresso seja mantido por muito tempo, o que permitiria ao Brasil adentrar o clube dos ricos. Acho que esse alicerce ainda é frágil. Quando olhamos para os níveis de corrupção, para o que se passa no Congresso, para o desempenho fraco de muitos governantes nos estados e municípios, perdemos um pouco o entusiasmo. Enquanto essas coisas não mudarem, acho cedo para afirmar que o futuro já chegou.

O COMBATE À CORRUPÇÃO É ASSIM TÃO IMPORTANTE PARA O DESENVOLVIMENTO DO PAÍS?
Sim. Nos últimos 30 anos, o debate sobre as causas do desenvolvimento foi dominado pelos economistas. A premissa era que, em última instância, é a qualidade da política econômica que faz a diferença entre países ricos e pobres. Todo o chamado Consenso de Washington, com aquela fórmula de políticas a ser seguidas por todos, partia exatamente dessa crença. Mas hoje está claro que uma economia sólida só funciona com boas instituições políticas. A lei precisa valer para todos. O direito de propriedade tem de ser respeitado. As oportunidades de sucesso precisam ser reais para todos. As empresas devem competir em bases justas. O governo não pode ser capturado por interesses particulares da elite. A corrupção tem de ser contida a um nível mínimo. E por aí a lista segue. Sem essas instituições políticas, não dá para pensar em desenvolvimento de verdade. No meu último livro, The Origins of Political Order (“As origens da ordem política”, numa tradução livre), tentei mostrar como foi difícil para o homem atingir esse estágio institucional das nações avançadas. Temos recursos de sobra para garantir a todas as pessoas saúde, educação, segurança, etc. Não conseguimos porque muitos governos ainda são controlados por poucos e negam à maioria o acesso às boas coisas da vida.

HÁ, NO LIVRO, LIÇÕES ESPECÍFICAS PARA PAÍSES COMO O BRASIL?
A parte mais relevante para o Brasil é sobre o patrimonialismo ibérico. Quando nos lembramos dos governos absolutistas da Península Ibérica do passado, geralmente os associamos a regimes tirânicos. Curiosamente, a história não era bem assim. Os reis tinham uma enorme dificuldade de se impor diante das elites, e isso fazia com que o Estado estivesse sempre endividado. Ou seja, os maus hábitos fiscais, tão comuns na América Latina do século 20, já estavam presentes na Espanha de Carlos V. Em muitos casos, os países latino-americanos viram surgir uma série de instituições criadas em favor das elites. E, como consequência, a região é, até hoje, uma das mais desiguais do mundo. O Estado e as elites existiam numa espécie de relação simbiótica.

O ESTADO FOI FRACO DEMAIS NA AMÉRICA LATINA?
Perdemos muito tempo debatendo o tamanho do Estado. Ora ele tem de crescer, ora tem de diminuir. Mas a questão central não é essa. O fundamental é um balanço de poder entre governo e sociedade. Se um dos dois se torna dominante, é um problema. O desequilíbrio é muito claro quando o Estado se impõe à sociedade. As ditaduras da América Latina, com tantas violações aos direitos humanos, são mais um capítulo numa longa história. Mas também pode ocorrer o contrário, quando a sociedade se torna dominante e controla o governo. Um exemplo atual é a Guatemala, onde o governo não consegue nem cobrar impostos e o setor privado faz basicamente o que quer. O segredo do sucesso americano desde o início é manter esse equilíbrio. O governo foi forte o suficiente para impor a lei. Mas sempre houve um setor privado e uma sociedade muito organizados e prontos para restringir o governo se necessário. O problema atual dos Estados Unidos é que esse equilíbrio pode estar se perdendo.

OU SEJA, UMA VEZ ATINGIDO O EQUILÍBRIO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE, É POSSÍVEL PERDÊ-LO?
Sem dúvida. Não é porque dado país atingiu o estágio de uma democracia liberal que as coisas sempre serão boas. É possível ter avanços na política, mas também pode haver decadência. Ideias podem se tornar rígidas, instituições criadas para determinado fim podem não funcionar em condições diferentes – tudo isso são causas possíveis de decadência.
Max dizia que o fim da história viria
com o comunismo.
Eu acho que é com
o liberalismo.
 
O SENHOR DEFENDE ESSE EQUILÍBRIO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE, MAS NÃO É EXATAMENTE ASSIM O MODELO CHINÊS. O CAPITALISMO DE ESTADO PROPOSTO PELA CHINA NÃO PODE ENCANTAR OUTROS PAÍSES, COMO O BRASIL?
A tentação, sem dúvida, será grande. Especialmente não caso do Brasil, com toda a sua história econômica de preponderância estatal. Mas essa modalidade de capitalismo, com forte protagonismo estatal, só funciona em condições muito específicas. É preciso ter um governo com uma alta capacitação. Os tecnocratas têm de se capazes de entregar resultados práticos. E o governo tem de estar relativamente protegido de influências políticas. O Brasil conseguiria ter tudo isso? Não podemos nos esquecer das décadas de decisões governamentais pautadas não por critérios técnicos, mas políticos. É verdade, que uma das principais pernas da ação estatal no Brasil, o BNDES, é hoje muito mais independente e profissional. Mas, nas últimas eleições, muita gente se disse temerosa de que, sob a desculpa do enfrentamento da crise, o banco acabasse nas mãos dos políticos. É sempre possível corromper uma boa instituição. Ao mimetizar os chineses, o Brasil pode acabar voltando no tempo e abraçando antigos hábitos. Além disso, cabe relativizar o sucesso chinês. O governo de Pequim tem sido muito eficiente. Mas é tão pouco transparente que nem todos acreditam que o desempenho da China seja tão impressionante quanto se diz. Será que todos os investimentos foram tão bem feitos assim? Suspeito que não.

O SEU LIVRO MAIS FAMOSO, O FIM DA HISTÓRIA, FOI DURAMENTE CRITICADO POR MUITOS. OS ARGUMENTOS DEFENDIDOS ALÍ CONTINUAM VÁLIDOS?
Meu argumento central era que, com o fim da utopia comunista, não havia opção senão a democracia liberal, pelo menos para os países que buscassem o desenvolvimento. Karl Marx acreditava que o fim da história viria com o comunismo. Eu afirmei que o fim do processo viria com a democracia liberal. Continuo acreditando que isso é essencialmente verdade. Surgiu, desde então, um competidor do modelo ocidental, a China – um país autoritário, parcialmente capitalista e extremamente bem-sucedido economicamente. Olhando de perto, porém, não acho que o modelo chinês seja tão sustentável quanto o democrático no longo prazo. Sem dar às pessoas o direito de participar da política, não dá para manter um governo moderno. O desafio, no final das contas, se dá no terreno da política, não no da economia.
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Reportagem por ANDRÉ LAHÓZ
Fonte: Revista Exame impressa, Ed. 1000, nº 17 – 21/9/2011 p.76-79.
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