sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Erotismo e pornografia em três narrativas

Eliana Cardoso *


O"Aurélio" define o significado da primeira parte da palavra pornografia (do grego "porné") como "prostituta" e, portanto, nos autoriza a chamar de pornográficas as histórias passadas em bordéis. Entretanto, dois dos livros resenhados nesta coluna, embora tenham profissionais como heroínas e o puteiro como cenário, não se encontram assim catalogados.
"Casa das Belas Adormecidas", de Yasunari Kawabata (tradução de Meiko Shimon, Estação Liberdade, 2010), e "Memória de Minhas Putas Tristes", de Gabriel García Márquez (tradução de Eric Nepomuceno, Record, 2005), têm colorido erótico, mas não cabem na estante da literatura pornográfica, apesar da ambientação escolhida por seus autores.
Ao contrário desses dois livros - dos quais falaremos mais tarde - "House of Holes: a Book of Raunch", de Nicholas Baker (Simon and Schuster, 2010) é declaradamente pornográfico. Mas, para nossa surpresa, não tem o prostíbulo como cenário nem meretrizes como heroínas. O livro (ainda não traduzido para o português) descreve uma espécie de acampamento de verão para adultos heterossexuais num ambiente utópico e diferente do universo que conhecemos. Cada um dos heróis penetra nesse mundo idílico pelo exame de um orifício que pode ser, por exemplo, a abertura do ureter do próprio pênis. Ou o círculo formado quando se junta o polegar e o indicador. Ou outro círculo qualquer. O orifício suga os protagonistas. Eles voltam a se materializar no campus da "Casa dos Buracos". A casa é ao mesmo tempo lugar de veraneio e clínica sexual.
Poucos autores compreenderam o potencial cômico da excitação sexual permanente comum ao universo da pornografia tanto quanto Baker, que desfia diálogos imundos sem se preocupar com sutilezas psicológicas. Por outro lado, as leitoras sentirão as descrições técnicas de complicadas coreografias como uma pesada imposição à nossa limitada inteligência espacial. Em compensação, ficarão felizes ao constatar que gozam na "Casa dos Buracos" da mesma liberdade que os homens.
"Os temas de Kawabata e sua sensualidade
são muito superiores aos de García Márquez
em sua novelaligeira sobre as memórias
que o velho guarda das putas idealizadas
de outras eras."

O mundo de Baker é igualitário. Ali não existem camareiras, prostitutas, virgens, babás, enfermeiras, professoras ou ninfetas. Nem incesto, nem sadismo, nem masoquismo. Todos se entregam ao prazer sem culpa ou sobressalto. O romance de Baker almeja não apenas livrar as mulheres da degradação, mas também liberar os homens, que se verão isentos da obrigação de convidá-las para um segundo encontro.
Para a geração de García Márquez, a utopia de Baker chega tarde demais. O herói de "Memória de Minhas Putas Tristes" nunca se deitou com mulher alguma sem pagar: "As poucas que não eram do ofício convencera pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo". O velho aposentado se confessa "um mau professor, sem formação, sem vocação nem piedade alguma por aqueles pobres meninos que só iam à escola por ser o jeito mais fácil de escapar da tirania dos pais". Vive no casarão herdado dos pais e se ocupa escrevendo uma crônica semanal para o jornal da cidade.
Para comemorar seus 90 anos pede a uma velha cafetina sua amiga que lhe arranje uma jovem virgem para "uma noite de amor louco". Na noite do aniversário e nas seguintes, o protagonista se limita a contemplar o corpo nu de Delgadina, a bela adormecida, e a imaginar a vida ao lado dela. E, então, se apaixona por ela, que nunca fala com ele, mas continua ali, sempre perfeita, dormindo ao seu lado no quarto do bordel.
Convencido de que encontrou o amor verdadeiro - "o primeiro amor da minha vida, aos noventa anos de idade" -, o velho confronta-se com uma revolução moral. Repudia a desolação e mesquinharia de sua vida passada e transforma-se "num outro homem". As crônicas semanais - que o jornal quase cancelara com exigências de maior atualidade, às quais ele antes respondia dizendo que "o mundo se move, mas em círculos em torno do sol" - tornam-se um sucesso à medida que a mudança na vida do ancião se reflete em seus textos. Obcecado pela evocação inclemente de Delgadina adormecida, muda o espírito das crônicas dominicais: "Fosse qual fosse o assunto as escrevia para ela". Elas caem nas boas graças dos leitores, que as admiram sem saber que liam os monólogos do velho ao lado da garota com quem ele dividia a cama e a quem ele preferia inconsciente e muda.
Por artes divinas, o frequentador de putas transforma-se em adorador da virgem, adorando o corpo da menina adormecida como o crente venera uma santa. Como não sou crente, acho difícil aceitar essa reviravolta espiritual do velho depravado em adorador de Nossa Senhora. A narrativa não oferece base psicológica para a mudança radical. J.M. Coetzee, nos seus comentários, sugere que García Márquez pode estar a defender a pedofilia, já que Delgadina parece absorver na pele as atenções do ancião, quase pronta a retribuir a paixão do herói. A novela seria mais convincente se, ao acordar, Delgadina mostrasse repulsa pelo velho babão.
A história do admirador envelhecido ao lado da moça que dorme também não é novidadeira. Na "Casa das Belas Adormecidas", Yoshio Eguchi, de 67 anos, frequenta a casa de uma cafetina que oferece jovens drogadas e adormecidas para deleite dos velhos. Ele passa várias noites com garotas diferentes. As regras da casa - supérfluas porque os frequentadores são idosos e impotentes - proíbem a penetração sexual. Mas Eguchi, o narrador-protagonista, brinca com a ideia de desrespeitar as regras, estuprar uma menina, engravidá-la e até mesmo asfixiá-la para mostrar seu repúdio ao tratamento dos velhos como crianças.
Eguchi é um sensualista autocrítico que responde a odores e ao tato e permite ao leitor explorar como sua mente funciona e seu Eros acorda. Ele observa em detalhe as particularidades de cada garota adormecida com quem passa a noite. Rumina memórias de suas passadas experiências. Confronta a possibilidade de que sua atração por jovens encubra seu desejo pelas próprias filhas. Reflete sobre a ligação entre sua obsessão por seios femininos e memórias da primeira infância.
No quarto solitário, onde existe apenas a cama e o corpo adormecido para ser usado sem testemunhas e sem risco de vergonha, Eguchi se vê como é: um velho perto da morte. "A feia senilidade dos homens tristes que procuravam aquela casa não estava muitos anos distante para o próprio Eguchi." Ele então se pergunta que proporção da imensurável extensão do sexo e de sua profundeza sem fundo ele teria conhecido em seus 67 anos. "Não seriam o desejo dos velhos pelo sonho inacabado e o remorso por dias perdidos e não desfrutados que se escondiam naquela casa?"
A última das garotas de Eguchi morre a seu lado, envenenada pela droga que a fez cair no sono. Na criação de sua obra de ficção, Kawabata ilumina com sutileza aspectos da vida sexual e se aproxima do poder de convencimento do insuperável Nabokov e sua Lolita. Os temas de Kawabata e sua sensualidade são muito superiores aos de García Márquez em sua novela ligeira sobre as memórias que o velho guarda das putas idealizadas de outras eras.
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*Eliana Cardoso é PhD em economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). É professora titular da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. Foi professora catedrática da Fletcher School (Tufts University) e professora visitante do MIT e das universidades de Yale e de Georgetown. Trabalhou no Fundo Monetário Internacional (FMI), no Banco Mundial e no Ministério da Fazenda. Eliana é uma estudiosa de escritores de língua inglesa e brasileiros. É autora de nove livros. “Fábulas econômicas”, da editora Pearson, e “Mosaico da Economia”, da editora Saraiva, são os mais recentes
Fonte: Valor Econômico on line, 28/10/2011

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