domingo, 23 de outubro de 2011

Por que ''o teu próximo'' revolucionou a fé?

Publicamos aqui um trecho do livro de Enzo Bianchi e Massimo Cacciari, Ama Il prossimo tuo (144 páginas), décimo primeiro e último livro da série "Os Mandamentos", publicado pela editora Mulino.
O texto foi publicado no jornal Corriere della Sera, 22-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

É preciso começar pelos textos decisivos em que ressoa o mandatum novum: "Amarás o Senhor teu Deus com todo O teu coração e toda a tua alma e com todas as tuas forças e toda a tua mente, e amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lucas 10, 27). O verbo agapán é usado para indicar tanto o amor que se deve ao Theós, quanto aquele ao próximo, plesios. A tradução latina, proximus, também mostra bem a importância do termo: proximus é de fato um superlativo. Não pode se tratar de um simples "vizinho". O plesios enquanto proximus se refere a nós com uma intensidade que nenhuma proximidade, nenhuma contingente contiguidade poderia alcançar. Nem se trata, certamente, de uma voz inexplicavelmente nova, vinda de algum outro lugar misterioso.
Esse mandatum também é um pleroma, não katalysis da Lei, salvação do próprio nomos em sua renovação radical. O preceito do pleno respeito dos direitos do hóspede, assim como do companheiro, do aliado, do amigo havia sido afirmado, de fato, com pleno vigor pelos profetas – porém, o rea' da Primeira Aliança, que a Septuaginta traduz no máximo como plesios, mesmo quando designa o estrangeiro, o concebe sempre como ligado a nós, ou pelo símbolo da hospitalidade, ou das relações de confiança recíproca, garantidos por pactos e arautos de acordos "úteis" às partes.
O timbre do mandatum evangélico "excede" completamente essa dimensão. O fato de combinar imediatamente o amor pelo Senhor ao pelo próximo constituiria verdadeira novitas, mesmo que plesios aqui traduzisse exatamente rea'. O que era mandado, juntamente com outros deveres, aqui completa até a Primeira Palavra! O Logos que serve de fundamento para toda a vida de Israel não se expressaria plenamente, permaneceria imperfeito, se não significasse em si mesmo amor pelo próximo.
É evidente que plesios é chamado, então, neste contexto, a assumir uma pregnância inaudita – mas, ainda mais, é evidente que a própria visão de Deus muda por essa sua extraordinária proximidade ao “plesios”.
Só em um ponto, talvez, na Primeira Aliança, se chega a uma intuição análoga – e é do maior significado isso ocorra em Jó. Todo o drama de poderia ser interpretado da seguinte forma: é isto que ele pede: não que lhe sejam poupados os suplícios (no máximo as fofocas dos “advocati Dei”), mas que Deus se mostre a ele como rea', plesios, proximus (16, 21): "como um mortal faz com o seu rea' (plesion autoú)", ele quer encontrá-lo “face a face” e defender o homem diante dEle. Moisés também falava com o Senhor como um homem fala com o seu rea' (Êxodo 3, 11), mas a cena em Jó está radicalmente mudada: no Êxodo, parece evidente a forma do acordo, ou melhor: da aliança eterna; “rea'” expressa aqui uma proximidade atual e incontestável. Para Jó, ao contrário, o Senhor deveria se fazer “rea'”; ele exige que a relação entre o mortal e o seu Deus se torne uma relação entre “próximos”.
Poder-se-ia argumentar que Jó exige a companhia, a amizade, a proximidade de Deus no sentido daquela reciprocidade confiante, que o termo “rea'" expressa substancialmente. Ele quer amar o seu Senhor como o próximo, no aspecto do próximo, mas isso não equivale de fato a amar o próximo como ao Senhor. E se isso ocorre, é evidente que o significado que atribuíamos a rea' e ao plesios dos LXX, é revolucionado.
Foi dito: "Amarás o teu próximo (agapeseis ton plesion soú)" – mas também foi dito: odiarás o inimigo, odiarás quem não está contigo no vínculo das leis da hospitalidade, no sentido mais amplo do termo. Mas talvez os gentios também não sabem disso? "Mas eu porém vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem".
Em Lucas o paradoxo da extrema proximidade entre amor por Deus e amor pelo próximo; em Mateus, o da relação que vem se estabelecer entre plesios e echthrós, entre proximus e inimicus. O inimigo não pode ser amado sob o fundamento de um pacto, nem em vista de qualquer ganho, nem esperando reciprocidade. No entanto, deve ser amado como plesios. Isto é, no termo, deve ser compreendido o máximo afastamento. Próximo, "superlativamente" próximo, é o próprio inimigo (o hospes que não só se declara abertamente hostis, mas até inimicus, echthrós).
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Fonte: IHU on line, 23/10/2011
Imagem da Internet

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