quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A aura de espiritualidade das marcas

Mário René*

UMA GARRAFA DE COCA-COLA PODE PROVOCAR
NOS DEVOTOS DO CONSUMO O MESMO EFEITO
QUE UM CRUCIFIXO NO CRISTÃO.
Uma garrafa de Coca-Cola é arremessada de um pequeno avião que sobrevoa o deserto de kalahari, entre Botsuana, Namíbia e África do Sul. O objeto é então recolhido por um bosquímano, habitante daquelas paragens que jamais teve contato com a civilização industrial. Como a garrafa “caiu do céu”, passou a significar um presente dos deuses.
A Coca-Cola “sagrada”, alvo de veneração, é uma cena do filme de sucesso em 1980. Os deuses devem estar loucos. Fossem outras as circunstâncias, tal produto poderia ser considerado sagrado?
No fim de 2008, foi lançado com sucesso nos Estados Unidos um livro com o sugestivo e criativo título de Buy-o-logy, escrito pelo consultor de marcas Martin Lindstrom (no Brasil foi traduzido em 2009 como A lógica do consumo). A obra foi fundamentada numa extensa pesquisa de neuromarketing e trouxe à tona várias conclusões. O mais impressionante capítulo versou sobre um experimento pioneiro que visa provar a conexão entre marca e religião. Esse estudo das imagens cerebrais demonstrou, via IRMf (imagem por ressonância magnética funcional) que a reação cerebral de pessoas espiritualizadas perante ícones religiosos é a mesma de consumidores diante de marcas de prestígio. As mesmas áreas cerebrais foram ativadas perante esses dois estímulos de natureza tão distinta.

A questão-chave: haveria comprovação científica possível do elo entre marcas e espiritualidade/religião? Que reação despertariam poderosas marcas-ícone, como Apple, Guiness, Ferrari e Herley Davidson, todas elas provocando paixão e lealdade? O facinante é que, ao ser exposto às imagens de marcas-ícones, o cérebro dos sujeitos “devotos de marcas” registravam precisamente os mesmos padrões de resposta de devotos expostos a imagens religiosas como crucifixos, rosários, Madre Teresa ou a Virgem Maria. Não havia diferença perceptível entre a reação às imagens religiosas: elas não eram simplesmente semelhantes, eram quase idênticas.

O surpreendente e paradoxal é que quando submetidos a imagens de esportes, estádios e estrelas esportivas, normalmente alvo de verdadeira veneração por parte dos fãs, os cérebros não despertaram a mesma reação provocadas pelas marcas.

Essa fantástica comprovação científica apenas chancela o que já foi defendido em minha tese de doutorado acerca da dimensão espiritual das marcas, que denominei brandscendência em livro recém publicado. Quer dizer, existe uma aura de espiritualidade envolvendo determinadas marcas-ícone, como as do experimento. Defendo que há cinco alicerces que podem embasar esse processo: espiritualidade, transcendência, desejos, branding e cenário.

1) Entre as várias definições possíveis de espiritualidade, escolhi a que melhor condensa vários aspectos relevantes e, ao mesmo tempo, delimita seu espaço sem entrar no mérito do conceito. “Espiritualidade”, que vem do latim spiritus, significa “sopro de vida” e é, segundo Elkins, um modo de ser e de sentir que ocorre pela tomada de consciência de uma dimensão transcendente, sendo caracterizada por certos valores identificáveis com relação a si mesmo, aos outros, à natureza, à vida e ao que quer que se considere o último.

O spiritus, como sopro de vida, está conectado à intensa inspiração como uma fonte de espiritualidade. Para os que vivem a espiritualidade com a crença em um ser supremo, chame-se a atenção para o “sopro de vida” no conceito de espiritualidade que adotei por referência, na acepção de energia vital que emana do criador para a criatura. Em muitas histórias da criação do mundo, segundo Wolman, a respiração é a analogia mais próxima do espírito e à alma. Na Bíblia judaico-cristã, o livro do Gênises relata como Deus dá vida à sua criação, com um sopro. Ruach,espírito em hebraico, é o sopro vital. Ao respirar, as pessoas inalam e absorvem parte dessa energia que as mantém vivas. Analogamente, a busca de transcendência pelo consumo objetiva “inalar e absorver” o algo além da dimensão funcional dos bens.

Finalmente, a definição de espiritualidade selecionada enfatiza a dimensão transcendente, no sentido do que a pessoa sente ou vê, como algo que vai além de sua condição humana, sem determinar necessariamente a qualidade ética dessa dimensão.

2) Transcendência denota a tentativa de incorporar “o outro”, o externo, seja ele um objeto, um ser ou lugar, e ao torná-lo próprio, engrandecer a si mesmo. Pressupõe o ir além, o ultrapassar fronteiras e limites, rumo ao além da condição humana do sujeito. A transcendência é almejada, jamais alcançada. Os judeus assim se referem a Deus: D’us. A ausência de uma vogal – o “e” – serve para lembrar que se refere a ele, mas nunca o descreve totalmente.

Transcendência significa ver coisas comuns de forma extraordinária. Sua antítese é o reducionismo: um beijo seria o afixar de duas extremidades superiores de dói tubos gastrointestinais. Sim, é isso, mas também significa muito mais do que isso.

Mesmo que o desejo permaneça sempre “em aberto”, jamais sendo plenamente saciado, a acumulação de riquezas e o consumo de marcas de prestígio compõem o sentido último da vida para muita gente na sociedade atual: uma meta transcendental, porque suplanta todos os limites e, na verdade, nunca é alcançada
"A reação cerebral de pessoas espiritualizadas
perante ícones religiosos é a mesma
de consumidores diante de
marcas de prestígio".
3) Dos alicerces, o desejo é o mais estudado pela psicologia e adaptado ao mercado. A sociedade de consumo tem por base a premissa de multiplicar e incentivar os desejos em ritmo alucinante, de uma forma que nenhuma sociedade do passado pôde realizar ou sonhar. É praticamente inviável o consumidor conseguir se realizar dentro de um panorama em que os estímulos ao consumo são continuamente renovados, em uma espiral infinita.

Essas desejos, de tão poderosos, chegam a ser “transformados” em necessidades (artificiais), não oriundas da condição psicobiológica do ser humano, mas do ambiente de mercado. Precisamente o que denominei “Necejos”, cuja gênese pode ser ilustrada por esta singela parábola citada por Baudrillard: “Era uma vez um Homem que vivia na Raridade. Depois de muitas aventuras e de longa viagem através da Ciência Econômica, encontrou a Sociedade da Abundância. Casaram-se e tiveram muitas necessidades”.

Um dos principais meios de ser reconhecido pelo outro é desejar, e daí possuir, o objeto que é almejado também por esse outro, o que René Girard denominou “desejo mimético de apropriação”. Nesse mecanismo de desejo, o bem em si é secundário: o fundamental é que seja desejado porque muitos outros o desejam.

Os desejos pelo novo, bem como sua conexão aos produtos e serviços desenvolvidos para satisfazê-los, ensejam duas grandes linhas de discussão: a) os desejos pelo novo já existem mesmo que embutidos nas profundezas da mente humana – inconscientes – , e cabe às empresas o papel de garimpá-los (quer dizer, os indivíduos possuem uma noção mesmo que embaçada dos desejos, que o mercado se incumbirá de ‘desenevoar’ na forma de produtos e serviços específicos); b) as pessoas basicamente estão satisfeitas com o que possuem, e as empresas se encarregam de “injetar” em sua mente desejos pelo novo . Essa prática, aliás, é defendida pelo economista John Kenneth Galbraith, ex-aluno do também famoso Joseph Schumpeter, pai da teoria da destruição criativa.

Desejos são ilimitados, pessoais e subjetivos, estando sempre além da possibilidade de serem saciados: o desejo permanecerá continuamente irrealizado. A falsa promessa da sociedade de consumo é a plena satisfação de desejos ilimitados, pois não há padrões a cujo nível se manter quando a linha de chegada avança junto com o corredor. Que é precisamente a ponte para a meta transcendental do consumo, quer dizer, uma meta posicionada além do alcance dos indivíduos; além da sua capacidade de atingi-la.

4) Branding é o conjunto de estratégias para o engrandecimento da marca. Ao transcender as características do produto, ruma para um significado trabalhado pela propaganda e pelo marketing, que permite aos consumidores a oportunidade de ir além da compra, na direção de experimentar e vivenciar plenamente o significado de sua marca.

Nas últimas décadas, a imagem simbólica da marca tem extrapolado significativamente as características tangíveis e funções do bem que nomeia, minimizando a distinção sob a ótica do desempenho. A propaganda é fundamental na construção simbólica das marcas, que reforçam ou compõem a identidade e o amor-próprio de muitos consumidores, que nelas buscam profundas âncoras emocionais.
5) E, por fim, o cenário. O tecnológico mundo atual assiste ao desencanto e à fragilização dos valores mais profundos da comunidade, da família e do sagrado das religiões tradicionais como fornecedores de sentido e encantamento . Espaço que pode estar sendo ocupado pelo mercado, cuja nomenclatura vem invadindo os domínios da religião e da espiritualidade, tornando possível ao padrão de consumo preencher um espaço central na constituição da identidade do sujeito: “Deus mercado”, shopping centers comparados a “templos ou catedrais do consumo”, “religião das marcas”, “devotos ou apóstolos das marcas”.
A simbiose de transcendência e desejo pela marca, chancelada pelas estratégias de branding, no cenário acima geram a brandscendência.
A brandscendência varia conforme o grau e a natureza do vínculo do indivíduo com o produto/marca.

Grau. É o potencial de enlevo do produto, que pode variar desde um simples clipe até um castelo; significado emocional-espiritual atribuído pelo próprio indivíduo, como a foto de um parente querido falecido; significado atribuído pelo sagrado, como uma árvore de Natal, crucifixos abençoados pelo papa, até chegar ao ápice do Santo Sudário e da Arca da Aliança. (O próprio sagrado, conforme Maslow em Religions, values and peak experiences, se revela num continuum , em graus de diferente intensidade: momentos pungentes, experiências místicas e peak experiences.) Significado atribuído pelo mercado estendido para as marcas, desde um significado neutro até, por exemplo, os veneradores da Apple. Vários consumidores da Apple costumam ser comparados com seguidores de seitas religiosas. Para eles, a maçã é como o símbolo da cruz ou da estrela de Davi; Steve Jobs, seu fundador, é uma espécie de profeta da informática, e muitas de suas lojas são ambientadas como verdadeiros templos.

Os artigos de luxo simbolizam magistralmente a brandscendência. A palavra “luxo”, etimologicamente, deriva do latim luxus, na acepção de sensualidade, abundância, explendor ou refinamento. O luxo é sempre caro e raro, original, na medida do possível, e geralmente vinculado a uma grife. E os produtos de luxo são os que mais se aproximam da ideação da perfeição, quer dizer, do que as pessoas imaginam ser o produto perfeito.

Natureza. A natureza do vínculo da pessoa com o produto/marca pode ser vivenciada de duas maneiras, “humanizante” e “fetichizada”, e dependerá da relação psicológica que o indivíduo pretende com ele.

Humanizante. Remete ao desfrute, pelo enlevo advindo de determinadas marcas e principalmente objetos fascinantes em si mesmos, elos para a transcendência. Fósseis e múmias que repousam em museus de história natural possuem o condão de nos transportar numa viagem no tempo para milhares de anos no passado. Também as artes (principalmente a música), os perfumes, alguns alimentos, o álcool e, por que não?, drogas alucinógenas. O desfrute remete ao “ir além” pelos sentidos, uma possibilidade de transcendência. A compra de uma passagem para uma mesmo que brevíssima viagem espacial na nave Discovery, numa “aventura pelos cosmos”, ilustra essa dimensão do desfrute.

Fetichizada. Remete à ostentação, principalmente quando a marca pode fetichizar a mercadoria e vai preencher ou reforçar no sujeito um espaço de valores frágeis ou ausentes. O que significa fazer de algo um fetiche? A crença no poder sobrenatural ou mágico de alguns objetos materiais, que em si eles não possuem, enquanto o indivíduo se ilude ao acreditar que esse poder emanado é intrínseco a ele. Como um amuleto, consiste em um objeto carregado de uma propriedade sobrenatural, uma espécie de força mágica, transcendente.

Quem adquire um bem, mormente para ser notado, acreditando engrandecer sua personalidade pela marca, possivelmente estará a navegar pela dimensão fetichizada. As marcas do universo da moda invadem esse portal: Louis Vuitton, Hermès , Prada, Gucci... Esse teatro de demonstração de riqueza é, por sinal, a porta da frente do conceito de consumo conspícuo, cunhado pelo americano Thorstein Veblen na virada do século 19 para o século 20. Sua obra-prima, A teoria da classe ociosa, procurava explicar a compulsão de muitas pessoas pela ostentação. Para muitos membros das classes superiores só faz sentido ter muito dinheiro se a riqueza puder ser alardeada num consumo exibicionista, demonstrando aos outros sua opulência.

Então, quando a brandscendência chega a preencher um espaço central na constituição da identidade do sujeito cujo “sentido último da vida” é materialista, desvenda uma dimensão espiritual que pode substituir ou complementar as experiências religiosas tradicionais, e se revela fetichizada.

A percepção de que bens e serviços, potencializados por marcas de prestígio, podem propiciar aos indivíduos consumistas uma vivência espiritual ( mesmo que fetichizada) é bastante recente, e ainda pouco explorada, e nos conduz a mais perguntas do que respostas. Devotos às marcas existem. E não são exatamente poucos. Mas quantos são? Quem são eles? Há uma tendência crescente ou decrescente? Em que países predominam? Como a comunicação pode trabalhar esse novo conceito? Quais seus limites éticos?

Em um primeiro momento, pode provocar estranheza discorrer sobre a aura sagrada a envolver o consumo de bens absolutamente seculares, afastados de itens imbuídos de simbologia religiosa, como crucifixos, estrelas de Davi, santos, quipás, alimentos Kasher, a Bíblia, o Alcorão, a Bíblia etc. Porém, o fato de assumirmos a existência e a influência da brandscendência não inviabiliza a crença em uma religião tradicional, em outra(s) divindade(s), e até mesmo num ser superior. Basta permanecer indiferente a eles no dia a dia: um sistema bem próxima do totemismo e da idolatria.

O que se observa é que a vida do dia a dia pode ser predominantemente regida pela brandscendência, sendo reservada a níveis mais elevados de espiritualidade a regência de questões de ordem superior. E aí pergunto: a se configurar tal cenário, não seria esse algo muito semelhante a uma nova forma de politeísmo? Nas alturas, em um céu abstrato, um deus supremo, e aqui embaixo, no mundo real, outros deuses aos quais se presta reverência, dentre os quais sobressaem as marcas de prestígio.

Será que os deuses devem mesmo estar loucos?
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• Mario René é doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista (SP) com mestrado em psicologia experimental pela USP. É professor nas áreas de marketing, comunicação e psicologia, com ênfase em comportamento do consumidor. Coordena o curso de pós-graduação em ciências do consumo da ESPM.
Fonte: Ética, publicação da Ediouro Duetto Editorial Ltda. Ética – Pensar a vida e viver o pensamento – Afetos consumo. Ed. 2, SP, pp.40-45.
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