sábado, 17 de dezembro de 2011

“Guerra e Paz” ainda está sendo escrito

INVASÃO RUSSA
Tradutor, escritor e professor
da rede pública estadual no Rio,
o carioca Rubens Figueiredo foi escolhido
pelo jornal O Globo como um dos intelectuais
mais influentes do país em 2011
O que é mais difícil: traduzir Tolstói direto do russo ou escrever um romance que conquista os leitores mais exigentes desde as primeiras páginas? Para o carioca Rubens Figueiredo, 55 anos, escrever sempre é, de alguma forma, traduzir:
– Quando você escreve, parte de sensações que não se apresentam, em princípio, em linguagem verbal. Você tem que traduzir para o português. O que chamamos de tradução é semelhante, só que você parte de um texto em outro idioma.
Rubens Figueiredo, irmão mais novo do ex-casseta Reinaldo, nunca esteve na Rússia e decidiu estudar o idioma mais ou menos por acaso. Aos 17 anos, indeciso profissionalmente, achou que seria “diferente”, em plena ditadura, estudar a língua de Gorki. O russo aprendido na UFRJ ficou arquivado durante mais de 15 anos, porém, até Figueiredo começar a fazer traduções para complementar o salário de professor da rede estadual.
Já como um dos melhores e mais requisitados tradutores de inglês e russo do país, Rubens Figueiredo alcançou este ano o devido reconhecimento como escritor. Seu oitavo livro, o romance Passageiro do Fim do Dia (Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 42), sobre a transformação pessoal de um homem durante o trajeto aparentemente interminável de um ônibus até um bairro da periferia, venceu dois dos principais prêmios literários do país (Prêmio São Paulo e Portugal Telecom). No cenário da literatura brasileira contemporânea, é como tirar o bilhete da loteria – o detalhe que faz a diferença entre um bom autor quase anônimo e um bom autor conhecido.
Se o novo romance tornou-se um dos mais comentados do ano, não teve menos repercussão a publicação da primeira tradução brasileira diretamente do russo de Guerra e Paz, monumental romance histórico-existencial de Tolstói que acaba de ser lançado em edição primorosa pela Cosac Naify. Para os jovens leitores, uma chance de conhecer um dos maiores clássicos da literatura em uma tradução que respeita todo o vigor da prosa original de Tolstói, evitando as “limpezas” de estilo cometidas por alguns tradutores. Para quem já leu Guerra e Paz antes, um convite para revisitar a obra em linguagem renovada:
– Seria bom se houvesse mais de uma tradução a cada geração.Quanto maior a distância de um livro tido como clássico, mais difícil para os leitores contemporâneos lerem este livro. A língua envelhece. A língua não é uma coisa que fica estável, ela muda a cada 10 anos.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone desde seu apartamento no Rio de Janeiro, Rubens Figueiredo fala de literatura e tradução, mas confessa que sua maior paixão ainda é o menos reconhecido e celebrado de seus talentos: o trabalho em sala de aula.

Cultura – O senhor “unificou os cinturões” em 2011, lançando o romance mais premiado do ano (Passageiro do Fim do Dia) e a tradução mais comentada (Guerra e Paz). Como isso aconteceu?
Rubens Figueiredo – Coincidiu. Eu vinha trabalhando há uns quatro anos no meu livro. Fiquei remoendo, indo e vindo. Parava, pensava. É um livro que eu fiquei mais pensando do que escrevendo. Eu escrevia e pensava: “Mas o que foi que eu escrevi? Será que estou dizendo o que gostaria de dizer ou o contrário?”. Aí voltava, refazia. Então, havia intervalos em que ficava apenas pensando. Não tinha nenhuma ideia de quando ia sair. A certa altura, achei que ficou apresentável. Entreguei em julho de 2010 para a Companhia das Letras. No mesmo ano, terminei Guerra e Paz, que passei três anos traduzindo para a Cosac Naify. Aí calhou de o meu livro ganhar estes dois prêmios (Prêmio São Paulo e Portugal Telecom) no mesmo ano. Então, foi uma conspiração a favor.

Cultura – Como o senhor está dividindo a sua rotina de escritor e tradutor?
Figueiredo – Eu não escrevo o tempo todo. Escrevo quando tenho uma ideia, quando tenho alguma coisa para dizer, quando acontece de eu ter material para escrever um livro. Não fico escrevendo por uma necessidade pessoal. Eu realmente faço um livro quando tem alguma experiência acumulada, alguma coisa no meu pensamento, nas minhas impressões, que acumularam, se concentraram, começaram a tomar uma forma e um grau. Aí eu começo a escrever. Traduzir tem que fazer o tempo todo, já que é a minha profissão.
Tolstói(1828 – 1910) na época em que escreveu “Guerra e Paz” (1865/1869):
 “É um livro que investiga processos históricos que ainda estão em curso”, afirma Rubens Figueiredo

Cultura – O senhor também é professor de adolescentes e adultos do ensino noturno na rede estadual do Rio. É um trabalho muito duro, não? O que o mantém em sala de aula?
Figueiredo – É o trabalho que eu mais gosto de fazer, não tenho dúvidas. Ir ao colégio, encontrar os alunos, conversar com eles. Aprendo com eles o tempo todo. São pessoas com outro tipo de vida, pobres, boa parte veio do Nordeste, trabalham. Vivem essa outra face da sociedade que a gente não vê ou então vê apenas com os nossos olhos. O que eu aprendi com eles tento pôr nos meus livros.

Cultura – E o trabalho do tradutor, como opera nesse triângulo?
Figueiredo – O trabalho de traduzir é muito semelhante ao de escrever. Quando você escreve, é uma coisa sua. Você parte de impressões, ideias, sensações, emoções, sugestões, enfim, que não se apresentam, em princípio, em linguagem verbal. Você tem que traduzir aquilo para o português. Suas experiências, suas emoções, seus temores, suas descobertas, em linguagem verbal, em língua portuguesa escrita. É uma tradução. A tradução propriamente, aquilo que nós chamamos de tradução, é semelhante, só que você parte de um texto em outro idioma. Que é, em princípio, a consolidação de experiências e ideias de outra pessoa. Aí você tem que transpor aquilo também para o português escrito. Então há um ponto em que as duas coisas se cruzam – escrever a sua obra e escrever as traduções. A diferença é que as traduções vêm de experiências e ideias alheias, e na maioria dos casos não coincidem com as minhas e até se chocam com as minhas. É essa a diferença. E também há um outro aspecto. A tradução permite uma leitura muito específica de um livro. Você começa a perceber detalhes que a leitura leiga, por prazer ou por curiosidade, ou por conhecimento mesmo, não detecta. Talvez um pesquisador percebesse, mas a tradução permite então você descobrir algumas coisas, ou perceber algumas coisas, ou ver o livro de uma perspectiva bem peculiar. É interessante. Eu, por exemplo, sei que descubro deficiências minhas de escritor nas deficiências dos outros, nos livros que eu traduzo. É mais fácil eu perceber as minhas limitações nos livros que eu traduzo do que lendo os meus próprios.

Cultura – No Brasil, temos uma longa tradição de bons escritores que fizeram traduções, como Drummond, Quintana, Lya Luft e mais recentemente Daniel Galera e o senhor. É ótimo para os leitores, obviamente, mas ao mesmo tempo denuncia a dificuldade de viver de literatura no Brasil...
Figueiredo – Exatamente. Você já viu aquelas caricaturas da África antiga, em que os nativos carregam, em uma espécie de andor, um inglês com roupa safári e seu fuzil de caça? Pois é, eu quando traduzo estes livros americanos, ingleses, me sinto o cara que está embaixo do andor. Porque há um elemento meio colonialista. Porque estou carregando os caras nas costas. É claro que eu ganho, sou um profissional, tenho uma recompensa, é diferente. Mas do ponto de vista de um escritor, que alguém supõe que tem algo a dizer para o seu país, para a sua sociedade, e acaba sendo porta-voz de outros, há algo esquisito. Tem alguma coisa que não pode passar em branco, eu acho.

"É um livro que investiga processos históricos
que ainda estão em curso.
 Que chegam até nós com muito força.
Não terminaram. Aquilo que acontecia,
 aqueles processos que estavam em andamento
naquela época, não chegaram ao fim."
Cultura – Como o senhor se preparou para enfrentar a tradução de Guerra e Paz?
Figueiredo – Depois de traduzir Ressurreição e Anna Karenina, comecei a ler muito sobre Tolstói. Comecei a catar material aqui e ali. Minha maneira não é sistemática, não é de um verdadeiro pesquisador. Mas fui juntando material, artigos, revistas universitárias de vários países. Isso foi curioso. Eu comecei a construir uma visão pessoal do assunto. Uma visão que eu creio que não está consolidada em nenhum autor. É a minha visão. É o meu Tolstói. Mas não é arbitrário, não é uma invenção da minha imaginação. Ele é formado pelas observações dos textos que li e traduzi e por dados biográficos e bibliográficos que eu encontro em livros de autores cuja opinião difere da minha. Mas os dados estão ali. Os autores dão certas interpretações, mas os próprios dados que eles apresentam não corroboram essa visão. Por isso que eu acabei formando uma imagem do escritor. Eu passei a duvidar de algumas coisas que são ditas sobre ele.

Cultura – Que tipo de coisas?
Figueiredo – Discordo, por exemplo, quando dizem que ele tem duas fases. Uma fase era assim, a outra era assado. Isso não existe na obra de Tolstói nem no seu pensamento. Quando você observa o que foi escrito por ele antes e depois, ou o que ele fez antes e depois, você vê que é um contínuo, um contínuo muito coerente. E o que caracteriza esse contínuo é uma atitude questionadora incansável, voltada para fora e para dentro. Ele não assentava em nenhuma conclusão, nenhuma tese ficava sólida. Sempre aquilo se tornava objeto de questionamento.

Cultura – O senhor foi falando e fui lembrando do personagem Pierre, de Guerra e Paz, que vai questionando tudo ao longo do livro, vai se reinventando, fazendo bobagens, começando tudo de novo...
Rubens Figueiredo – E o Andrei também é muito semelhante. Porque, por exemplo, quando ele vai se casar com a Natasha, ele muda de ideia, dá um ano de prazo... Ele experimenta trabalhar na alta cúpula da política. Se desilude, resolve ir para o Exército. Aí, no quartel-general, ele passa a desacreditar das estratégias. Resolve ir para a frente de batalha. Ele também tem essa mutação, essa busca. No caso do Andrei, até quando ele morre, tem-se a impressão de que chegou a pacificação interior, mas ele simplesmente morre. Então é um pouquinho injusto... É curioso, têm essas coisas do Tolstói.

Cultura – As escolhas do tradutor sempre oferecem uma leitura particular do autor e de suas circunstâncias?
Figueiredo – Eu vou frisar isso porque acho relevante. Tem uma expressão nas traduções de outros idiomas que você vai encontrar como “guerra patriótica”, mas na minha tradução você vai encontrar isso como “guerra popular”. A diferença não é irrelevante. Entre “guerra patriótica” e “guerra popular” há uma grande distância. E você vai observar que quando Tolstói usa essa expressão ele está se referindo às formas de resistência que a população russa começou a aplicar contra as tropas do Napoleão. Queimaram milho, mataram os animais, destruíram silos, não deixaram nada para eles comerem. Não venderam comida para eles. Ou então, a ação militar de tropas irregulares dos milicianos ou guerrilhas, coisas assim. A expressão “guerra patriótica” não se justifica nem pelas palavras em russo. Então por que tantas traduções em tantos idiomas insistiram em usar “guerra patriótica”? Sabe por quê? Porque a expressão “guerra popular” é muito agressiva, muito crítica. E sublinha a desigualdade social. Essas ideias, essa perspectiva, não condizem com a noção que vigora de clássico da literatura universal. Veja só, nós estamos em 2011. Por que só agora uma tradução é popular?
"A literatura russa do século 19 era
a arena pública dos debates e da polêmica."
Cultura – E isso aparece nos outros idiomas também?
Figueiredo – Nos outros idiomas está “guerra patriótica”. Em inglês, em francês, “guerra patriótica”. E no final do livro, ele fala em “força do povo”, e eles traduzem como “força da nação”. Não é pouco. Eu sublinho estas coisas. Isso são penas sinais de diferença de tradução. Está no dicionário, mas o tradutor pode optar por interpretar aquilo. E de onde vem essa interpretação? Uma tradução depende muito da visão crítica que o tradutor tem da obra e do autor. Bem como da relação desta obra com o seu tempo, da sua sociedade. Se essa visão crítica da obra, do autor, da relação da obra com a sociedade for muito frouxa e tiver poucas informações, poucos dados, passiva de ser influenciada pelo senso comum, ideias mais fortes, que dominam, isso vai afetar a tradução. E o sentido original vai se perder. Então esse é o problema, que não é técnico. É um problema de entendimento crítico, de visão da história. E isso influencia.

Cultura – E.M. Forster diz que o teste final de um romance é o afeto que sentimos por ele. O que pode explicar a permanência de Guerra e Paz e o afeto que ainda desperta nos leitores tantos anos depois de ter sido escrito?
Figueiredo – É um livro que investiga processos históricos que ainda estão em curso. Que chegam até nós com muito força. Não terminaram. Aquilo que acontecia, aqueles processos que estavam em andamento naquela época, não chegaram ao fim. Eles se desdobraram, mudaram de roupagem, mas estão ativos no nosso tempo, no nosso cotidiano. E o autor do livro tratou esses processos não como um dado da natureza, não como algo que deva ser aceito como uma coisa incontestável, mas como um objeto de conhecimento, de investigação, de questionamento. Isso dá abrangência ao livro. Isso permitiu que ele fosse se tornando muito abrangente. E a admissão interior dos personagens ganha muito em função disso. Em função da relação que essa vida interior tem com grandes processos históricos. Tudo o que é pequeno, cotidiano, concreto, ganha conteúdo e peso porque faz parte de um todo. Um todo que está em andamento. Essa á minha hipótese. Nós sentimos que aquilo chega até nós. Aqueles problemas não são alheios a nós. A gente pode até alegar “não, isso já passou”, mas isso é a mesma atitude blasé de dizer “mas eu não tenho nada a ver com isso”. Acho que o livro se propõe ao contrário. Quer dizer, nós temos tudo a ver com isso.

Cultura – São como dois eixos em Guerra e Paz: o painel histórico e a vida interior dos personagens...
Figueiredo – E os dois são ligados, não são independentes. Não há autonomia. Eles andam juntos, eles se afetam. Os dois afetam um ao outro. E os dois enriquecem um ao outro. Eu acho também que o fato de os personagens não serem tão fechados, tão delimitados em si mesmo, permite que a gente tenha afeição por eles. Porque reconhece neles pessoas. A gente tem vontade de proteger, de amparar...

Cultura – Existe uma espécie de invasão da literatura russa, não? Não só no Brasil, com tantas boas edições chegando às livrarias, mas no resto do mundo também. Muito trabalho para tradutores...
Figueiredo – Tem. É uma coisa fora do normal. Não tem paralelo.

Cultura – Por que surgiram tantos gênios literários na Rússia do século 19?
Figueiredo – A literatura naquela época não era aquilo que é para nós hoje, nem o que era para a Europa de então. Era outra coisa. Ela tinha uma relação diferente com a sociedade. Havia um ambiente social que fez da literatura um campo muito rico de debate, de polêmica, de conhecimento. Muita coisa foi projetada na literatura. A expectativa da sociedade foi projetada na literatura. E mesmo que não houvesse a literatura, o dinamismo da sociedade russa nessa época era enorme. As polêmicas intelectuais que ocorreram ao longo de décadas lá são impressionantes. E elas não se passaram dentro dos parâmetros que nós temos como polêmicas intelectuais. Um livro de um teólogo ou de um padre era como se falasse sobre o mesmo assunto de um livro de agronomia. Era como se um sujeito que escreve sobre a história da Grécia antiga estivesse falando o mesmo assunto do outro que fala sobre as leis, sobre a prostituição. Tudo isso se fundia. Não havia essa diferença. Se relacionavam com o conhecimento e com a sociedade de outra maneira. De uma maneira, ao meu ver, muito mais dinâmica, mais livre. Imagine uma sociedade em construção. Uma sociedade que olha para frente e vê um horizonte aberto. Vê mil possibilidades. E que se empenha em concretizar mil possibilidades, todas elas, e debater sobre elas a sério. Essa era a diferença. Daí vem a literatura russa.

Cultura – Dos grandes autores russos, qual é o seu favorito?
Figueiredo – Eu realmente me impressiono muito com Tolstói, mas gosto muito também de Tchekhov e Gorki, que eu acho maravilhoso. Turguêniev também é fantástico...

Cultura – Para terminar, que conselho o senhor daria para alguém que fosse traduzir seu Passageiro do Fim do Dia para o russo?
Figueiredo – (risos) O meu conselho seria fica à vontade, relaxa...
GUERRA E PAZ EDIÇÃO ESPECIAL
De Liev Tolstói, com tradução e apresentação de Rubens Figueiredo.
Dois volumes.
Editora Cosac Naify, 2.536 páginas, R$ 198.
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REPORTAGEM POR CLÁUDIA LAITANO
Fonte: ZH/CULTURA on line, 17/12/2011

2 comentários:

  1. Caro companheiro de labuta Zelmar Guiotto. Pesquisando sobre Guerra e Paz, depois de ler o comentário feito por Luiz Rebinski Junior, sobre a referida obra, procurei garantir aos leitores do Bússola Literária, a experiência de conhecer a tão consagrada obra de Tolstói. Como achei excelente, esclarecedora e envolvente esta entrevista, tomei a liberdade de lincá-la à minha publicação. Espero contar com o seu aval, pois, só fez enriquecer o que pretendia transmitir aos fiéis seguidores do Bússola Literária. Espero que você dê uma passadinha por lá, para conferir. Obrigado por permitir-me conhecer melhor o estupendo trabalho de Rubens Figueiredo e, suas impressões sobre o romance Guerra e Paz, e o seu autor. Abraço fraterno.

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  2. Em frente, caro Dilson Paiva! A curiosidade leva a pesquisa e assim se aproxima da verdade e quando esta é encontrada, vemos que ela está mais adiante. Em frente! pois o mundo é hoje e amanhã, o passado já foi... Um abraço fraterno.

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