sábado, 17 de dezembro de 2011

Tradutor pode matar ou melhorar obras originais


Profissionais comentam dificuldades encontradas
 ao exercer seu ofício

Embora muitas vezes próximo de um trabalho autoral,
tradução ainda não encontra devido
reconhecimento no país

Um tradutor não dá à luz novos livros. Mas pode melhorá-los. Ou matá-los.
Num ofício dividido entre a criação artística e a mera reprodução fidedigna dos originais, esse coautor de romances alheios vem ganhando prestígio maior do que as notas de rodapé podem dar.
O lançamento em português do mais recente romance do japonês Haruki Murakami, "1Q84" -programado pela editora Alfaguara para o segundo trimestre de 2012-, prova que traduzir é um trabalho autoral.
"O que fazemos exige um esforço artístico, uma vez que um texto é mais do que a mera soma das palavras", diz Lica Hashimoto.
Neta de japoneses, ela começou com textos técnicos há mais de 20 anos e hoje tem em mãos um romance que, só nos EUA, vendeu 1 milhão de cópias em 30 dias e, no Brasil, tem encomendas de livrarias há mais de dez meses.
A japonesa Meiko Shimon, que verteu para o português "O Mestre de Go", último romance do Prêmio Nobel de Literatura (1968) Yasunari Kawabata a ser lançado pela Estação Liberdade neste mês, diz que fazer pontes com o idioma japonês é muitas vezes "criar e recriar, mais do que apenas traduzir".
DIFICULDADES

O japonês impõe aos tradutores a dificuldade de trabalhar com três alfabetos diferentes, linguagem lacônica, inúmeros pronomes de tratamento e conjugações inexistentes em português.
Isso exige do tradutor algo próximo de uma coautoria, já que trechos inteiros têm de ser adaptados. "É difícil explicar peculiaridades sem perder a fluência do texto. Às vezes, nem as notas de rodapé esclarecem como é exatamente a coisa", diz Meiko.
Um exemplo da dificuldade de traduzir o japonês está em outro livro de Kawabata, "Kyoto". Nele, duas irmãs, embora gêmeas, são tratadas pelos substantivos "ani", irmã mais velha, e "imôto", irmã mais nova.
Em português, não há equivalente. Por equações como essa, Meiko diz que é comum ter um "nó na cabeça, que se prolonga por horas ou dias".
Em muitos países, os tradutores conseguem se especializar em um determinado autor ou estilo e há até mesmo prêmios literários para a categoria, mas, "no Brasil, o trabalho de tradutor não é valorizado", diz o tradutor e escritor Milton Hatoum.
Hoje, já existem originais em russo, japonês, árabe, alemão e hebraico traduzidos para o português sem escalas em versões inglesas ou francesas, como ocorria antigamente.
Mesmo assim, a maioria desses profissionais ainda vive se equilibrando em contratos incertos com as editoras, que pagam, em média, R$ 30 por página com 2.100 caracteres de tradução.
O escritor e tradutor Alexandre Barbosa de Souza, que trabalha para Companhia das Letras e Cosac Naify, diz que "em literatura, os bons tradutores costumam ser bons escritores, mas o essencial é ser um bom leitor".
"Poucos têm a oportunidade de ler melhor uma obra literária do que o tradutor."
Em 2012, Souza lançará sua obra de poemas "Livro Geral" pela Companhia, mesma editora que lançará "O Lugar Mais Sombrio", de Hatoum. Neste, a protagonista é justamente uma tradutora.

BUSCA DA ESSÊNCIA

"Uma boa tradução capta a essência do original: o ritmo, o tom e a dicção da linguagem, e também o contexto cultural e histórico da obra", descreve Hatoum.
"Não gosto de traduções literais, palavra por palavra, nem das que recorrem a artifícios exagerados, com o intuito de serem inventivas".
Para Souza, apesar de o risco de estragar as obras ser grande, há, em outros casos, a chance de melhorá-las.
"Acredito que o tradutor do Paulo Coelho seja melhor do que o Paulo Coelho original, mas nós deveríamos ser como goleiro num jogo de futebol, que, quando vai bem, é porque não se fez notar."
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REPORTAGEM POR JOÃO PAULO CHARLEAUX COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Fonte: Folha on line, 17/12/2011
Imagem da Internet

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