sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O sinal da cruz

Mauro Santayana*

Quando chegou, pernas e braços perebentos, alguns riram, mas houve os que o olharam com compaixão. Nos baldios humanos em que nos cumpria existir, era normal que ríssemos diante das desgraças alheias: era uma forma de exorcizar o nosso próprio sofrimento. O menino era cheio de outras marcas, todas estranhas. Trazia, no peito, dependurada em uma corrente de cobre, a cruz de pedra, talhada por suas próprias mãos, segundo nos disse. Nas nervuras minerais mostrava-nos alguns sinais, de longe sugerindo números e letras, nas quais lia pequenos apocalipses. Andava sempre em ziguezague, olhava sempre para o céu e para o chão, cuspia sobre os próprios pés descalços, como os de todos nós.
Deixamos de rir quando nos chegou, por ele anunciada, a primeira desgraça. “Vejo sangue no meio do pátio, um caixão e muito choro” — falou-nos, depois de haver, em um canto, e sozinho, rezado a ave-maria das 6 horas da tarde. “Eu não quero saber de conversa com malucos” — advertiu Enéias, persignando-se. O menino olhou-o com tristeza: “Brinca muito Enéias, e conversa hoje com todos os seus amigos”.
No dia seguinte, antes do almoço, no meio do pátio, Enéias deixou, correndo, a formação dos que vinham da roça, para buscar uma carta na Secretaria. Levava a enxada, para deixá-la, antes, na sala-de-ferramentas: tropeçou e caiu, o peito magro sobre a lâmina. Nós o sepultamos, no dia seguinte. Todos choramos, também de medo. O menino, com suas perebas e sua cruz, parecia ser o senhor de nossa vida e de nossa morte.
“Deixamos de rir quando nos chegou,
por ele anunciada, a primeira desgraça”

“Se vocês quiserem viver, devem rezar muito, e deixar o pecado” – pregava, e o ouvíamos em silêncio. Que pecados deixar? Fora os primeiros, solitários, que outros haveria? É verdade que colhíamos, como se as roubássemos, as frutas do pomar e alguns legumes da horta, mas sabíamos que aquilo nos pertencia, porque éramos nós que plantávamos e cuidávamos, mas os funcionários é que desfrutavam de nosso trabalho, além de comer da carne e dos mantimentos que o governo mandava para nós. Assim, não havia culpa, não havia pecado. Não tínhamos nem mesmo inveja, porque, entre nós, não havia a quem invejar.
“Desprezar os mandamentos de Deus é o caminho do inferno” — pregava, enigmático, enquanto passava pelos grupos, reunidos nos cantos das paredes pelo frio da serra.
Não lhe dirigíamos a palavra: só respondíamos ao que perguntava, e o que perguntava era pouco: “Vocês viram o fulano? O fulano está muito chateado. Recebeu uma carta de casa dizendo que a mãe está doente. Conversem com ele”. Não conversávamos.

“Chegou Geraldo. O chefe de disciplina
recebeu-o com um bofetão nos ouvidos”

Quando Geraldo fugiu e foi apanhado, o menino nos avisou no dormitório. Soprou para o seu companheiro de lado: “Passa pra frente: pegaram o Geraldo na estrada, ele vai chegar amanhã cedo com um soldado”.
Era verão alto, e às 6 da manhã, antes que soasse o apito para a formação dos que iam para o serviço no campo, o menino, sozinho, colocou-se sob a grande paineira e começou a rezar o credo em voz muito alta. O chefe de disciplina ordenou-lhe que fizesse silêncio. “Só obedeço a Deus Nosso Senhor, e rezo por Geraldo que vai sofrer por todos os pecadores” — respondeu, altivo. O chefe de disciplina apitou para a formatura, e o menino não se moveu, continuando a rezar. “Deixa ele acabar de rezar”, aconselhou Martins, um funcionário experiente. “Ele é manso, só tem mania de rezar”.
Antes que terminasse sua oração, chegou Geraldo. O chefe de disciplina recebeu-o com o bofetão nos ouvidos. O menino, debaixo da paineira, gritou-nos: “Vamos rezar juntos, vamos rezar juntos” — e puxou o padre-nosso. Todos o acompanhamos, em voz muito alta. “Cala, cambada de vagabundos” — gritou, histérico, o chefe de disciplina. “Cala, todo mundo, ou vou moer no pau este cachorro aqui”.
—“Vamos rezar, gente” — impelia-nos o menino — “o pão nosso, de cada dia, nos daí hoje”.
Gritávamos a oração, e, alucinado, o chefe de disciplina chutava Geraldo, que começou a pôr sangue pelas narinas. “Ele sofre por nós” — explicava o menino, ainda de joelhos, e passava à salve-rainha.
Alguém chamou o diretor, que veio correndo, e subjugou o auxiliar pelos ombros. “Você está louco? Estão todos loucos?”.
No chão, a camisa de zuarte empapada em sangue, Geraldo não se movia. “Você matou o menino! Vamos, você matou o menino?”.
Levantou-se então o “rezador”, como o chamávamos, e disse ao diretor que se acalmasse. “Ele não morreu, está sofrendo por nós”.
Duas semanas depois, levaram o menino para um manicômio. “Ele estava pondo os meninos todos loucos” — ouvi o diretor explicar a um tio que fora vê-lo. “Lá, naturalmente, vai sarar”.
Sabíamos que não. Um dia antes, no dormitório, ele passou-nos a mensagem: “Amanhã começa meu martírio. Rezem por mim”. Durante uns dias, rezamos. Depois, o esquecemos.
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* Jornalista.
Fonte: Jornal do Brasil on line, 10/01/2012
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