segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Por que devemos voltar para Jesus.

Hans Küng*

"Só seguindo o Messias, pode-se agir,
sofrer e morrer de modo humano".
Mediante o livro Ser cristão (Ed. Imago, 1976), inúmeras pessoas encontraram a coragem para serem cristãs. O autor sabe isso por causa das inúmeras resenhas, cartas e colóquios. Muitas pessoas, de fato, afastadas da prática e da pregação de alguma grande Igreja cristã, buscam caminhos para continuarem sendo cristãos confiáveis, buscam uma teologia que não seja abstrata para eles e alheia ao mundo, mas explique de modo concreto e próximo da vida em que consiste ser cristão.
Ser cristão não pretendia "seduzir" as pessoas com a retórica ou agredi-las com um tom de pregação. Nem queria simplesmente fazer proclamações, declamações ou declarações em sentido teológico. Pretendia motivar, explicando que, por que e como uma pessoa crítica também pode ser responsavelmente cristã perante a sua razão e o seu ambiente social.
Não se tratava de uma simples adaptação ao espírito do tempo. Certamente, sobre questão discutíveis como os milagres, o nascimento virginal e o túmulo vazio, a ascensão ao céu e a descida aos infernos, sobre a práxis eclesial e o papado também era preciso assumir posições críticas. Isso, porém, não para seguir uma fácil tendência inclinada à hostilidade contra a Igreja ou ao pancriticismo, mas sim para purificar, a partir do próprio Novo Testamento como critério, a causa do ser cristão de todas as ideologias religiosas e para apresentá-la de maneira credível.
A originalidade do livro não está, portanto, nas passagens críticas; está em outro lugar, no fato de ter fixado critérios que, para muitos, representam desafios em teologia. Em Ser cristão, de fato, eu tentei: apresentar toda a mensagem cristã no horizonte das ideologias e religiões contemporâneas; dizer a verdade sem resguardos de natureza político-eclesiástica e sem me preocupar com inclinações teológicas e tendências da moda; não partir, por isso, de problemáticas teológicas do passado, mas sim das questões do ser humano de hoje e, a partir daí, apontar para o centro da fé cristã; falar na língua do ser humano de hoje, sem arcaísmos bíblicos, mas também sem recorrer ao jargão teológico da moda; destacar o que é comum às confissões cristãs, como o renovado apelo ao entendimento no plano prático-organizativo; dar expressão à unidade da teologia de modo que não possa mais ser negligenciado o nexo inabalável entre teoria confiável e práxis vivível, entre religiosidade pessoal e reforma das instituições.
A esse livro não faltaram reconhecimentos públicos. Além disso, também foi uma oportunidade para as Igrejas e, nesse nível, ele encontrou um amplo consenso igualmente. No entanto, não pode ser silenciado o fato de que os membros da hierarquia alemã e romana fizeram de tudo para esvaziar essa oportunidade. Não se envergonharam – diante do sucesso do livro até mesmo entre o clero – de pôr publicamente em dúvida ou, melhor, de difamar a ortodoxia do autor. De nada serviu ao autor o fato de ter declarado amplamente, mais uma vez, a sua fé em Cristo no livro Deus existe? (1978), que apareceu quatro anos depois de Ser cristão. A hierarquia romana e alemã tomaram a cristologia aqui exposta como pretexto para retirar do autor a “missio canonica” para o ensino da teologia, pouco antes do Natal de 1979, embora jamais tenha sido realizado um processo magisterial contra Ser cristão e Deus existe?. Dessa forma, buscou-se desviar a discussão da embaraçosa questão da infalibilidade à questão cristológica, não por último para envolver os cristãos evangélicos. Além disso, para os expoentes da hierarquia contrários às reformas eram indigestas as exigências de reforma na Igreja que eram propostas nesse livro.

"A minha crítica à Igreja, assim como a de
muitos cristãos, brota justamente
do sofrimento pela discrepância entre
o que esse Jesus histórico foi, pregou, viveu, lutou,
sofreu, e o que hoje a Igreja institucional,
com a sua hierarquia, representa."

Assim, a hierarquia alemã apoiou o percurso de restauração do papa polonês que estava então se impondo e teve que pagar um alto preço por isso: a perda de credibilidade e uma difundida hostilidade contra a Igreja na opinião pública.
Com toda a modéstia: algumas coisas na pregação e na pastoral cristã seguramente teriam sido diferentes e não tivesse sido recusada a oferta de Ser cristão. Mas, como sempre acontece: para mim, Ser cristão tornou-se ponto de partida para um novo desenvolvimento teológico e para uma espiritualidade à qual, apesar de todas as dificuldades do presente, o futuro devia pertencer.
Como inúmeros outros católicos antes do Concílio Vaticano II, eu também cresci com a imagem tradicional de Cristo da profissão da fé, dos concílios helênicos e dos mosaicos bizantinos: Jesus Cristo, "Filho de Deus", sentado em um trono, um "Salvador" amigo dos seres humanos e, ainda antes, para a juventude, o "Cristo Rei". Sobre isso, eu depois acompanhei, em Roma, um curso de um semestre inteiro sobre "cristologia". Certamente, eu passei sem problemas por todos os exames em latim, não exatamente simples – mas a minha espiritualidade? Isso era outra coisa totalmente diferente, permanecia insatisfeita. A figura de Cristo só se tornou decisivamente interessante para mim quando eu pude conhecê-la, com base na moderna ciência bíblica, como real figura da história.
A essência do cristianismo, de fato, não é nada de abstratamente dogmático, não é uma doutrina geral, mas sim, desde sempre, é uma figura histórica viva: Jesus de Nazaré. Ao longo dos anos, elaborei o perfil singular do Nazareno com base na riquíssima pesquisa bíblica dos últimos dois séculos, refleti sobre tudo com apaixonada participação.
De Ser cristão em diante, sei do que estou falando quando, de modo totalmente elementar, eu digo: o “modelo de vida cristã” é simplesmente esse Jesus de Nazaré enquanto messias, christós, ungido e enviado. Jesus Cristo é o fundamento da autêntica espiritualidade cristã. Um exigente modelo de vida para a nossa relação com o próximo, assim como com o próprio Deus, que, para milhões de seres humanos em todo o mundo, tornou-se critério de orientação e de vida.
Quem é, portanto, um cristão? Não é aquele que diz apenas "Senhor, Senhor" e apoia um "fundamentalismo" – seja ele de tipo bíblico-protestante, ou autoritário-romano-católico ou tradicionalistaoriental-ortodoxo. Ao contrário, cristão é aquele que, em todo o caminho pessoal de vida, se esforça para se orientar praticamente para esse Cristo Jesus. Não se exige nada mais.
A minha vida pessoal e, assim, qualquer outra vida, com seus altos e baixos, e também a minha lealdade à Igreja e a minha crítica à Igreja só podem ser compreendidas a partir dessa referência. A minha crítica à Igreja, assim como a de muitos cristãos, brota justamente do sofrimento pela discrepância entre o que esse Jesus histórico foi, pregou, viveu, lutou, sofreu, e o que hoje a Igreja institucional, com a sua hierarquia, representa. Essa discrepância tornou-se muitas vezes insuportavelmente grande. Jesus, nas cerimônias pontifícias da basílica papal de São Pedro? Ou na oração com o presidente George W. Bush e o papa na Casa Branca? Inconcebível!
O mais urgente e mais libertador para a nossa espiritualidade cristã, consequentemente, é nos orientar pelo nosso ser cristão, tanto em nível teológico quanto prático, não tanto segundo as formulações dogmáticas tradicionais e os regulamentos eclesiásticos, mas sim de novo e cada vez mais segundo a singular figura que deu nome ao cristianismo.
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* Teólogo suíço-alemão Hans Küng, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 20-01-2012.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 23/01/2012
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