sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Um rio cansado

Eliana Cardoso* 

Porque "até o mais cansado dos rios serpenteia cuidadoso para desaguar no mar", o poeta inglês Algernon Charles Swinburne se alegra quando a velhice o livra da esperança e do medo.
Aceitar o ciclo da vida com tranquilidade prova a sabedoria de Swinburne e também a de Freud, em entrevista de 1926 (http://niilismo.net/forum/viewtopic.php?t=216). Sofrendo de impedimento na fala, depois da operação de tumor maligno no maxilar, disse Freud: "Tive bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Vi as plantas crescerem na primavera. De vez em quando, apertei uma mão amiga. Algumas vezes, encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?"
E continua: "Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição. Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e os impulsos de morte habitam lado a lado dentro de nós. [...] No começo, a psicanálise supôs que o amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana. [...] O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção".
Entre numerosos romances sobre a velhice, a doença e a morte, esta coluna escolheu dois para a conversa de hoje: "A Morte de Ivan Ilitch", de Lev Tolstói (tradução de Boris Schnaiderman, Editora 34, 2010) e "a máquina de fazer espanhóis", sem maiúsculas, como quer o autor angolano valter hugo mãe (Cosac Naify, 2011).
Retrato poderoso da deterioração física e do rejuvenescimento espiritual no limiar da existência, a novela de Tolstói se abre com a discussão dos colegas de Ivan Ilitch, surpresos com notícia de que alguém, com a mesma idade e posição deles, morrera. Alguns experimentam prazer com a expectativa de oportunidades criadas pela morte de Ivan. Outros consideram sem entusiasmo a perspectiva de levar as condolências à viúva, que parece interessada apenas em conseguir do governo assistência financeira acima da pensão a que tem direito. A mulher e os amigos tratam a morte de Ivan Ilitch com a mesma distância com que, antes de morrer, ele tratara todos. A cena espelha as relações humanas do morto e se projeta sobre o restante da narrativa, que vai confirmar a suspeita da superficialidade do herói e de seus amigos, aqui insinuada.
"Ao comentar a memória curta dos peixes,
observa que eles não enlouquecem nos aquários
"porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar.
devíamos ser assim, a cada três segundos
ficávamos impressionados com a
mais pequena manifestação de vida,
porque a mais ridícula coisa na primeira imagem
seria uma explosão fulgurante
da percepção de estar vivo. compreendes. a cada
três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada,
apenas o assombro dessa constatação"."
Ivan Ilitch

O narrador descreve grandes blocos da vida do protagonista em poucos parágrafos, misturando os assuntos inconsequentes com os importantes, assim reduzindo todos eles à trivialidade daquela vida comum e, portanto, terrível. Depois de uma queda, Ivan começa a sentir um gosto estranho na boca, implica com a mulher, que se sente abusada, e vai ao médico, que não sabe lhe dar um diagnóstico. Em alguns meses veremos nosso herói tomar ópio para aliviar a dor e a angústia e morrer aos pouquinhos. Seu único consolo será Gerasim, um camponês que o serve como enfermeiro.
Ivan Ilitch começa a entender que sua vida fora um erro, entendimento a que chega apenas depois de observar a vida errada dos outros. Nota que ninguém se importa com sua dor e que, quando não conseguem negá-la, o culpam por ela. Ivan recebe as formas convencionais de polidez que antes usara para manter os outros a distância, quando confrontado por apelos de compaixão. A vida se torna insuportável. A morte, a única realidade. Médicos e familiares ignoram sua condição e ele passa a odiar a hipocrisia e a atitude condescendente da mulher, que o deixa a sofrer para ir à ópera com os filhos.
Durante a doença lhe ocorre várias vezes que não vivera como deveria ter vivido, apenas para fugir imediatamente desse pensamento. "Talvez eu não tenha vivido como se deve - acudiu-lhe de súbito à mente. Mas como não, se eu fiz tudo como é preciso?" As semanas se passam enquanto Ivan Ilitch examina a própria vida. "Veio-lhe a mente: podia ser verdade aquilo que lhe parecera antes uma impossibilidade total, isto é, que tivesse vivido a sua existência de maneira diversa da devida." Quando a mulher lhe comunica o noivado da filha e se contenta em lhe recomendar que tome seu remédio, pois ele gemia de dor, Ivan, entendendo a hipocrisia que marcara a própria vida, a expulsa do quarto.
O herói e a sociedade que o cerca se recusam a aceitar a morte, para a qual Ivan não encontra explicação ("O sofrimento, a morte... Para quê?"). Essa recusa espelha a esterilidade de suas vidas. Ele condena a frieza e a crueldade dos outros, mas só no último momento antes da morte vai perceber o que de fato lhe faltara, porque custa a entender que a vida se torna vazia, fantasmagórica, quando se evita sistematicamente a dor e se escolhem relações formais e distantes, como a dele com sua mulher, expressa na indiferença dele pela dor dela durante a gravidez e na dela pela doença dele. O comportamento oposto é o de Gerasim, cheio de vitalidade e capaz de aceitação instintiva da morte.
No limiar da existência Ivan Ilitch se vê forçado a admitir a falta de compaixão que marcara sua vida antes tão bem organizada. Quando se dá conta disso, pode então experimentar pena da mulher e do filho, e sua perspectiva sobre a morte muda. Na hora final encontra a paz:
"Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. [...] - Acabou! - disse alguém por cima dele. Ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito. A morte acabou - disse a si mesmo. - Não existe mais."
Em "a máquina de fabricar espanhóis", antónio jorge da silva descobre (a duras penas) o companheirismo entre colegas de asilo, onde foi deixado pelos filhos aos 84 anos, depois de perder a mulher. E se surpreende com sua descoberta: "nunca eu teria percebido a vulnerabilidade a que um homem chega perante outro, nunca teria percebido como um estranho nos pode pertencer, fazendo-nos falta. não era nada esperada aquela constatação de que a família também vinha de fora do sangue, de fora do amor ou que o amor podia ser outra coisa, como uma energia entre pessoas, indistintamente, um respeito e um cuidado pelas pessoas todas".
No asilo, silva reflete, mistura lembranças, saudades e remorsos. No decorrer da narrativa, vai se lembrando de passagens de sua vida, que se confundem com a história de Portugal da ditadura salazarista à revolução de 1974, e faz dura revisão de seu passado.
Ao contrário de Ivan Ilitch, que só encontra a redenção no último minuto da existência, antónio silva entende, durante sua temporada no asilo, como devemos viver a vida e é capaz de apreciá-la pelo menos por um tempo breve. Ao comentar a memória curta dos peixes, observa que eles não enlouquecem nos aquários "porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes. a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação".
Mas, ao contrário de Ivan Ilitch, antónio da silva, tendo descoberto o valor da vida, não vê a morte como redenção: "a enfermeira entrou, aproximou-se de nós, perguntou, o que sente, senhor silva. e eu repeti, angústia, sinto angústia".
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* Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio).
Fonte: Valor Econômico on line, 27/01/2012 

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