segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Surge uma dúvida: ainda sei duvidar?

  Franco Garelli*
Um exercício tolerante e construtivo que,
em nível coletivo, cria as condições
da democracia. O ponto de partida
é uma antiga convicção: não se erradica
a necessidade de Deus do
coração humano.
Em toda a sua vida de grande estudioso dos fenômenos religiosos, Peter Berger – hoje professor emérito da Universidade de Boston, autor de livros famosos como Um rumor de anjos, O imperativo herético, Questões de fé – fez um constante exercício de equilíbrio, de conciliação entre opostos, de uma busca de sentido que foge tanto das simplificações, quanto das visões ideológicas da realidade. Não tanto, obviamente, pelo gosto da moderação ou do compromisso, mas sim por estar convencido de que, por trás das posições extremas no campo religioso, esconde-se a não aceitação da condição moderna.
Entre os pontos qualificadores do seu trabalho, certamente está o desmascaramento dos fanatismos de todo tipo, que, na modernidade avançada, assumem rostos diferentes e contrastantes: das Igrejas e dos fiéis que pregam uma ortodoxia acrítica (mais atenta aos dogmas do que à vida), àqueles que, em nome da razão e da ciência, negam valor à busca da fé; dos muçulmanos que perseguem os cristãos, aos ocidentais que impugnam a cruz contra os imigrantes islâmicos; sem falar das excomunhões recíprocas que grupos de fiéis de orientação diferente lançam entre si sobre temas da família, do aborto, da bioética. Orientações radicais ou absolutas, portanto, cujo fundamentalismo está na base dos conflitos que agitam o mundo hoje sobre várias questões éticas e religiosas.
Justamente a esses temas, Peter Berger dedicou seu último livro, escrito com Anton Zijderveld, com o título emblemático Elogio del dubbio [Elogio da dúvida], agora traduzido na Itália pela editora Il Mulino. Trata-se de uma sintética e cativante summa do seu pensamento, revisitada à luz dos fenômenos emergentes nesse campo.
O ponto de partida reflete uma antiga convicção de Berger. A modernidade necessariamente não erradica a necessidade de Deus do coração do homem, embora modificando o seu modo de estar e de se orientar no universo. Hoje, não vivemos mais em um mundo de destino, mas sim de escolhas, que se afirmam também no campo religioso. Assim, o crer não é mais dado por óbvio ou como uma característica hereditária, mas torna-se cada vez mais um objeto de preferência. Paralelamente, na sociedade aberta, a verdade religiosa também tende a perder o seu carácter exclusivo e assume validade em relação ao ambiente.
A modernidade, portanto, pluraliza e relativiza, nos torna conscientes de que o mundo é habitado por muitas concepções de verdade e de salvação, que cada sociedade e cultura tem os seus próprios percursos de significado.
Muitos, no entanto, não aceitam uma pluralidade que desestabiliza a existência e buscam ancoragens mais fortes. Incluem-se nesse quadro os extremismos opostos: seja os fiéis que se enraízam em antigas certezas, que se fecham na fortaleza para evitar a contaminação cognitiva; seja aqueles que optam por um relativismo radical, cuja dúvida sistemática põe em causa toda forma de crença religiosa.
De um lado, portanto, há fiéis fanáticos convictos de ter o monopólio absoluto da verdade, pela qual suprimem toda sombra de dúvida e ridicularizam aqueles que acreditam de modo moderado ou duvidoso; de outro, os relativistas puros, os forçados à dúvida, a tal ponto que se tornam cínicos e rotulam como fanatismo toda forma de credo. A dúvida, em outros termos, precisa de uma sólida racionalidade que a mantenha sob controle.
Eis, portanto, as interrogações fundamentais sobre as quais Berger e Zijderveld construíram a sua obra: como ser hoje reflexivo e crítico com relação à realidade sem cair no relativismo e no cinismo? E, ao mesmo tempo, como amadurecer convicções justas sem se tornar fanático? Em outros termos, como aceitar a modernidade evitando atalhos de sentido oposto, empreendidos apenas com o objetivo de fugir do tormento da escolha? E ainda, como os relativistas extremos fazem para não relativizar até a si mesmos?
É desnecessário dizer que o elogio do qual se fala no livro é o de uma dúvida sincera, coerente, construtiva. A verdadeira dúvida não pode dar vida a muitos "ismos" que circulam nas nossas sociedades (identificados no fanatismo, no relativismo, no cinismo), cujas "certezas" contrastam com os "prós e os contras", os estados de humor oscilantes, a contínua busca de sentido da qual está embebida a experiência da modernidade avançada.
Uma dúvida ao mesmo tempo tolerante e construtiva, que, em nível pessoal, sempre oferece novos estímulos para melhor definir as suas posições, enriquecendo-as também com o pensamento alheio; e que, em nível coletivo, cria as condições da democracia, ao dar espaço à discordância, combater os absolutismos, mas, ao mesmo tempo, levar a encontrar novas sínteses.
Muitas outras inspirações surgem desse fino trabalho, que, na argumentação, alcança o pensamento de muitos clássicos das ciências humanas e sociais, e que nos presenteia definições que nos obrigam a ir além da obviedade e das posições convencionais. Como aquelas para as quais "a verdadeira dúvida é típica de uma posição genuinamente agnóstica"; ou a observação de que "em todo fundamentalista há um relativista à espera de ser libertado, enquanto em todo relativista há um fundamentalista à espera de renascer"; ou ainda a ideia de que, "para uma sociedade estável, são perigosas tanto a extrema segurança, quanto a extrema insegurança".
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* Sociólogo italiano  professor da Universidade de Turim, em artigo para o jornal La Stampa, 04-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 20/02/2012
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