sexta-feira, 30 de março de 2012

Faça como Montaigne


Marcelo Rezende*
 

Divulgação / Divulgação 
 Sarah Bakewell: "Cada geração, cada cultura encontra seu Montaigne, 
e todos achamos nele alguma coisa familiar, como se 
estivesse falando para cada um de nós"
 
Nas últimas semanas, a presidente Dilma Rousseff surgiu no noticiário em razão de momentos de tensão, provocados pelos desacordos com a base aliada no Congresso; nos EUA, Barack Obama enfrenta - no caminho para a reeleição - a radicalização do discurso de seus adversários, enquanto no cenário europeu, entre os efeitos da crise econômica, se assiste à reaparição de antigos fantasmas sociais, como o fascismo, o fanatismo e a xenofobia. Tudo parece sob um destrutivo perigo iminente? Na história isso não seria a primeira vez, e desde o século XVI o francês Michel de Montaigne, morto em 1592 na Dordogne, no sudeste da França (aos 59 anos), tem dado possíveis respostas para a dificuldade política, econômica, afetiva e pessoal de estar vivo. O que Montaigne diria agora aos governantes? Talvez que "a lei da determinação e da constância não diz que não devemos nos proteger, no limite de nossas forças, do mal e dos inconvenientes que nos ameaçam nem por consequência ter medo daquilo que nos surpreende". Essa, claro, entre centenas de outras possíveis, razoáveis, sensíveis e iluminadas respostas.
"Como Viver - Uma Biografia de Montaigne em Uma Pergunta e Vinte Tentativas de Resposta", da escritora e curadora inglesa Sarah Bakewell, acaba de ser lançado no Brasil após ter sido recebido com aprovação e uma visível dose de entusiasmo na Inglaterra e nos Estados Unidos em 2010. O livro não é exatamente uma biografia nem um ensaio sobre o pensamento de Montaigne, que foi um dos instantes definitivos da Renascença e pedra fundamental do humanismo. A obra se situa na tentativa de explicar a vida pela obra, e a obra por uma vida em tudo extraordinária. "Acredito que cada geração, cada século, cada cultura encontra seu Montaigne, e todos achamos nele alguma coisa familiar, como se estivesse falando diretamente e apenas para cada um de nós", diz Sarah em entrevista ao Valor, procurando detalhar não apenas a motivação por trás de seu "Como Viver", mas defendendo razão pela qual ler Montaigne neste novo século pode ser tão essencial quanto foi para todos aqueles que vieram antes, em qualquer outra era e lugar.
A questão sobre a permanência de Montaigne, continua Sarah, é que "há tantas faces de Montaigne quanto existem leitores. Eu, como uma pessoa do século XXI, encontro muitos pensamentos em seus 'Ensaios' que parecem apropriados para nós. Penso em suas respostas para as guerras religiosas e os fanatismos de todo tipo, e também sobre o modo de Montaigne de lidar com a questão da perspectiva, os diferentes pontos de vista em um mundo culturalmente complexo. Como o nosso". Montaigne como filósofo, moderno antes dos modernos e um autor de autoajuda que pode auxiliar qualquer pessoa a viver melhor com a própria natureza e a natureza dos acontecimentos do mundo? A resposta é sim, e isso pode parecer estranho, mas não necessariamente um passo mal dado. Autoajuda, claro, em outro contexto.

Na obra de Montaigne, morto em 1592, 
é possível encontrar respostas para a dificuldade 
política e afetiva de todos os tempos

O Michel de Montaigne dos livros escolares aparece como o inventor do ensaio como gênero literário, filósofo e homem político - ocupou o cargo de prefeito de Bordeaux. Em meio às guerras religiosas da França de seu período - que opunham de forma sangrenta católicos e protestantes - se retira na torre de seu castelo para escrever sobre suas observações a fim de tratar da essência de tudo aquilo que é humano. Esses são os fatos, mas como todo resumo a descrição é imprecisa. Montaigne foi tomado por diferentes paixões, um viajante movido pela extrema e muitas vezes perigosa curiosidade sobre outras culturas e defensor da noção de que filosofar é essencialmente aprender a viver. Ou, em último caso, aprender a morrer.
"Como Viver" se estrutura a partir dessa ideia. Em uma determinada manhã, Montaigne cai do cavalo e fica inconsciente após a queda. Essa proximidade da morte penetra em sua experiência de estar vivo, e ele faz uso dos autores clássicos (Sêneca, Epicuro, Plutarco) a fim de entender a vida e a maneira mais justa para vivê-la. Com os textos ele ajuda a si mesmo e cria com seus "Ensaios" (publicados em 1580) uma fonte que pode ajudar aquele que virá. Um exemplo: em 1981, quando o presidente socialista François Mitterrand chega ao poder na França, em meio a uma ainda ativa Guerra Fria, posa para o retrato oficial com os escritos de Montaigne em suas mãos. Mensagem dada. A Presidência procurará o equilíbrio.
Mas Montaigne foi também o homem de insuportáveis cólicas renais, da dificuldade de ter menos de 1,60 m (ele ficava sempre sobre um cavalo quando estava nas ruas), do tédio do casamento, da infelicidade. E foi com esse particular que Montaigne gerou reflexões universais em seus "Ensaios", que no seu tempo e nos séculos seguintes foram sucesso entre leitores ao fornecer orientações sobre a existência. Para Sarah Bakewell, um estranho paralelo é possível: "Eu concordo com a opinião de Andrew Sullivan [autor conservador britânico, colunista do jornal 'The Sunday Times'], que disse ter sido Montaigne o primeiro 'blogueiro'. Há realmente algo especial em Montaigne, porque ele tende a fazer perguntas mais do que dar respostas ou colocar sua opinião em primeiro plano. Algo muito raro em qualquer era!"
Filosofia, autoajuda, século XVI, século XXI, cultura de massa e aristocracia. Tudo pode mesmo se misturar assim? Sarah acredita que mesmo para Montaigne uma distinção rígida entre o modo pelo qual via a filosofia e um livro de aconselhamento não faria muito sentido. "Eu não penso que deveria existir uma divisão rigorosa. Não se trata de alta cultura contra baixa cultura. Mas há uma diferença. Hoje a autoajuda procura por respostas fáceis e imediatas, com instruções sobre como fazer isso ou aquilo para ser feliz. Por isso Montaigne é um filósofo e não um guru. Não há respostas fáceis e imediatas. Talvez pudéssemos vê-lo como um romancista. Nós aprendemos em seu livro do mesmo modo que aprendemos ao ler um romance: vemos uma pessoa nas diferentes fases da vida, errando e tentando tomar boas decisões. Nos reconhecemos em outro ser humano." "Como Viver" é um livro sobre Montaigne, sobre os escritos de Montaigne e feito, isso se vê, à maneira de Montaigne.
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* Marcelo Rezende é autor do romance "Arno Schmidt" e cocurador dos projetos "Comunismo da Forma" (São Paulo/Toronto, 2007-2009) e "À la Chinoise" (Hong Kong, 2009).
“Como Viver — Uma Biografia de Montaigne em Uma Pergunta e Vinte Tentativas de Resposta”.
Sarah Bakewell. Trad.: Celso Nogueira. 400 págs., R$ 39,90
Fonte: Valor Econômico on line, 30/03/2012

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