Mino Carta*
Sou filho de um anticlerical agnóstico e de uma católica praticante.
Meu pai, que poderia ser visto pelos anjos como “homem de boa vontade”,
não hesitou em matricular os dois filhos no curso primário do colégio
genovês das marcelinas, por serem elas, em plena Segunda Guerra Mundial,
antifascistas. Tenho das freiras lembrança saudosa, embora as aulas de
catecismo e relativas provas não fossem de pura diversão. Outras coisas
valiosas aprendi com elas, e neste aprendizado não incluo o fato de ter
sido competente coroinha, presa de uma ponta de exibicionismo a bem do
justo exame de consciência.
A lição paterna, de todo modo, influenciou bem mais meus
comportamentos do que a de minha mãe, e assim esclareço por que meu
propósito é tocar em assuntos a envolverem fé religiosa e atitudes
eclesiásticas. Espanta-me, confesso, que ao cabo de oito anos de
debates, o Supremo Tribunal Federal somente agora decida se grávidas de
fetos sem cérebro podem abortar sem risco de acabarem presas. E falamos
de seres destinados ao oblÃvio em vida.
Quando, candidata à Presidência da República, Dilma
Rousseff aventou a possibilidade da descriminalização do aborto, foi
grita geral. A ex-guerrilheira ousava além da conta e a ideia foi
rapidamente abortada. Há muito tempo o aborto deixou de ser crime nos
paÃses mais civilizados e democráticos do mundo. Na Itália, cujo Estado e
cuja Justiça foram afrontados pelo governo brasileiro no Caso Battisti,
o aborto foi descriminalizado na década de 70, na época em que, segundo
o ex-ministro Tarso Genro e eminentes juristas nativos, a PenÃnsula era
dominada por um governo de extrema-direita contra quem se insurgiam
heróis da resistência como Cesare Battisti. Diante disso, o arco da
velha descoloriu.
Não sei o que se pode esperar do nosso Supremo. Mas que aquela
questão esteja em pauta, e em uma versão que não aceita perplexidades, é
de pasmar. Leio um pequeno livro que a Editora Einaudi acaba de lançar
na Itália, registra o diálogo entre o cardeal Carlo Maria Martini,
figura extraordinária que concorreu à vaga papal com o então cardeal
Ratzinger no Consistório de 2005, e o cientista Ignazio Marino. Observa
Martini que a postura negativa e apriorÃstica da Igreja diante das
mudanças provocadas pelo progresso e pela técnica nunca foi
bem-sucedida. Galileu docet, ensina, acrescenta.
Martini não tem dúvidas, e nem pode tê-las à luz da sua fé: na hora
em que o espermatozoide penetra o óvulo, a vida começa. É como o toque
de dedos entre Deus e Adão no afresco da Sistina. O Brasil é, porém, um
Estado laico, nele quem professa algum credo religioso tem a mesma
liberdade de decidir o destino da gravidez quanto o tem quem não
professa credo algum. O professor Safatle escreveu a respeito uma coluna
magistral há quatro semanas. E nem se fale da situação agora entregue Ã
decisão do STF. No caso, mandam a lógica, a razão, o senso comum, por
cima das crenças ou da falta delas.
"Segundo Martini,
existem dentro de cada um
“cavernas obscuras e
labirintos
impenetráveis”
Há inúmeros momentos exemplares no diálogo entre o cardeal e o
cientista. Por exemplo. Pergunta Marino: “Não seria razoável encaminhar
com urgência um debate internacional em busca de um equilÃbrio entre o
mundo da ciência e as diversas sensibilidades éticas e religiosas,
superando com honestidade intelectual as atitudes dogmáticas?” Responde
Martini: “Parece-me evidente que não podemos deixar de ouvir os
cientistas (…), por isso é desejável que a discussão ocorra de forma
serena e construtiva, não somente no que tange às células-tronco, mas,
em geral, a respeito de temas éticos que com razão agitam almas e
consciências”.
O cardeal não evita discorrer acerca da sexualidade,
“campo obscuro, profundo, magmático, difÃcil de definir, parte da
existência onde entra em jogo o subconsciente (ou o inconsciente?)
e onde as explicações racionais podem defrontar-se, tanto no plano
individual quanto no de grupos sociais e nas culturas, com uma
resistência interior que não se deixa convencer”. Segundo Martini,
existem dentro de cada um “cavernas obscuras e labirintos
impenetráveis”. De mais a mais, “o filão evolutivo que inclui o homem
não se esgotou, de sorte que não podemos prever facilmente os
desenvolvimentos dos próximos milênios”. Temos, portanto, um cardeal
evolucionista.
E vem à tona uma questão crucial, o homossexualismo. E o cardeal
pronuncia algo inédito em relação às posições de sua Igreja. Ele se diz
pronto a admitir que “a boa-fé, as experiências de vida, os hábitos
adquiridos, o inconsciente e provavelmente alguma inclinação de
nascimento podem levar à escolha de uma vida em parceria com alguém do
mesmo sexo”. Diz ainda: “No mundo atual, esse gênero de comportamento
não se presta, portanto, a ser demonizado ou condenado”.
Não consigo escapar a uma derradeira reflexão: o mundo de hoje não
mereceria um papa Martini em vez de um papa Ratzinger? Certas
desventuras, infelizmente, não acontecem por acaso.
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* Jornalista. Diretor de redação de CartaCapital.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ciencia-e-religiao/13/04/2012
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