terça-feira, 3 de abril de 2012

Depois da paixão

Francisco Daudt*
Ela só dura cerca de quatro anos, mas se não for correspondida pode nos assombrar por décadas 
SEGUNDO OS evolucionistas, a paixão surgiu há poucas dezenas de milênios em nossa espécie, selecionada como uma vantagem evolutiva, já que permitia à mulher ter a ajuda de um homem para aumentar as chances de sobrevivência de sua prole. Ficou em nós como um software inato, com um prazo de validade de cerca de quatro anos (o bastante para que a cria seguisse o grupo por suas próprias pernas).
Na savana africana, as mulheres raramente tinham mais que dois filhos, com grande espaçamento, pois o aleitamento inibe a ovulação.
As mães morriam mais, os filhos mais ainda, o que manteve a população humana estável até o surgimento da agricultura e pecuária (há 10 mil anos), quando deu um pequeno salto, e até o começo do século 19, com a descoberta dos germes, o saneamento básico, a tecnologia dos remédios e o agronegócio, que resultaram nesta desgraceira procriativa de 7 bilhões de pessoas a sugar o planeta.
Mas, se a paixão só dura quatro anos (correspondida, a não correspondida pode nos assombrar por décadas), o que vem depois dela?
São três as principais consequências: 1. Indiferença; 2. Sadomasoquismo; 3. Amor companheiro.
Indiferença: se de ambas as partes, há separação mais ou menos tranquila. Se da parte da mulher, que quer se separar porque se apaixonou por outro, ela corre um risco muito grande de ser assassinada pelo abandonado. Ou de ser "stalked" ("perseguida", quem viu "Atração Fatal" sabe o que é). Se da parte do homem, que se apaixonou por outra, o assassinato é mais raro, o "stalking" mais comum, a vingança na Vara de Família, mais comum ainda. É frequente que os filhos sejam usados como munição de vingança.
Sadomasoquismo: os dois se sentem prisioneiros/carcereiros da situação, e desenvolvem um jogo de maltrato, mais ou menos sutil -vai desde um deles depreciando o outro em público até à lei Maria da Penha não aplicada, pois sempre se reconciliam, e dão tempero ao sexo com a briga (ou o sexo some, e só fica o maltrato). Desgraçadamente, bodas de prata são mais comuns derivando do sadomasoquismo que do amor. É vício a dois, mesmo.
Amor companheiro: o tipo de amor muda. É mais calmo, menos sujeito a percalços. Eles têm projetos comuns e afinidades. Gostam de ser pais e acompanharem juntos o crescimento dos filhos. Apreciam-se, desfrutam da companhia do outro, têm assunto, mesmo sozinhos no restaurante.
As tentações (essas existirão sempre) são declinadas para não atrapalhar o bem precioso que partilham. Tornam-se amigos que são prioridade na vida um do outro. E amizade é algo que pode crescer sempre. Adoram a ideia de envelhecerem juntos. Cultivam uma intimidade que parece sobrepor-se à nossa inescapável solidão. Têm vida própria e zonas de partilha; não se sentem obrigados ao grude.
Têm-me perguntado se, agora que eles se tornaram amigos, o desejo não está fadado ao desaparecimento. Certamente, o sexo animal não vai mais rolar. Mas o sexo derivado do carinho e do aconchego tem seu valor especial, e só fará fortalecer a amizade. 
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* COLUNISTA DA FOLHA
fdaudt2@gmail.com
FONTE: FOLHA ON LINE, 03/04/2012 

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