domingo, 22 de abril de 2012

Discurso no ONU: por que a Terra é nossa Mãe

Leonardo Boff*

Convidado oficialmente, tive a oportunidade  de fazer um pronunciamento durante a 63ª sessão da Assembléia Geral da ONU no dia 22 de abril de 2009 para fundamentar o projeto a ser votado de transformar o Dia Internacional da Terra em Dia Internacional da Mãe Terra. O projeto foi acolhido por unanimidadade pelos 192 representantes dos povos. Eis o texto pronunciado na ocasião.

Senhoras e Senhores, representantes dos povos da Terra.

Desejo começar recordando a séria advetência feita pela Carta da Terra ainda no ano 2000: “Estamos num momento crítico da história da Terra, no qual a humanidade deve escolher o seu futuro…A nossa escolha é essa: ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros ou então arriscamos a nossa própria destruição e a da diversidade da vida”(Preâmbulo).
Se atual crise econômico-financeira é preocupante, a crise da não-sustentabilidade da Terra, revelada no dia 23 de setembro de 2008, se apresenta ameaçadora. Os cientistas que estudam a pegada ecológica da Terra chegaram a usar a expressão The Earth Overshoot Day, quer dizer, o Dia da Ultrapassagem da Terra. Exatamente, neste dia 23 de setembro, foi constatado que a Terra ultrapassou em 30% sua capacidade de reposição dos recursos que necessitamos para viver. Agora precisamos mais de uma Terra para podermos  atender as demandas dos seres humanos e aqueles da comunidade de vida.  Mas até quando?
Cumpre garantir previamente a sustentabilidade da Terra, se quiseros fazer face aos aos problemas mundiais que nos afligem como a crise social mundial, a alimentária, a energética e a climática. Agora não dispomos de uma Arca de Noé que pode salvar alguns e deixa perecer a todos os demais. Ou nos salvamos todos ou pereceremos todos.
Neste contexto, recordemos as prudentes palavras do atual Secretário Geral da ONU, Ban-Ki Moon, num artigo, mundialmente difundido, escrito em parceria com Al Gore: “não podemos deixar que o urgente comprometa o essencial”. O urgente é resolver o caos econômico e o essencial é garantir a continuidade das condições ecológicas da Terra para que ela possa nos oferecer tudo o que precisamos para viver.
Para reforçar esta nova centralidade que visa a salvar o essencial e a mostrar nosso amor a todos os humanos e à própria Terra é que se propõe à esta Assembléia Geral da ONU a resolução de celebrar  o dia 22 de abril não mais simplesmente como o Dia Internacional da Terra, mas como o Dia Internacional da Mãe Terra (International Mother Earth Day).
Se esta resolução for acolhida, como espero, aumentará em toda a Humanidade o cuidado, o respeito,  a cooperação, a compaixão e a responsabilidade face ao nosso Planeta e ao futuro do sistema-vida.
Não dispomos de muito tempo nem possuímos suficiente sabedoria acumulada. Por isso, temos que, juntos e rápidos, elaborar estratégias de sobrevivência coletiva.
Em nome da Terra, nossa Mãe, de seus filhos e filhas sofredores e de todos os demais membros da comunidade de vida ameaçados de extinção, vos suplico veementemente: aprovem esta resolução.
Para fundmentar esta aprovação me tomo a liberdade de apresentar-lhes, senhores e senhoras, representantes dos povos, algumas razões que nos concedem chamar a Terra de verdadeiramente nossa Mãe.
Antes de mais nada, falam os testemunhos mais ancestrais de todos os povos, do Oriente e do Ocidente e das principais religiões. Todos testemunham que a Terra sempre foi venerada como Grande Mãe, Terra Mater, Inana, Tonantzin e Pacha Mama.
Para os povos originários de ontem e de hoje, é constante a convicção de que a Terra é geradora de vida e por isso comparece como Mãe generosa e fecunda. Somente um ser vivo pode gerar vida em sua imensa diversidade, desde a miríade de seres microcópicos até os mais complexos. A Terra surge efetivamente  como a Eva universal.
Durante muitos séculos predominou esta visão, da Terra como Mãe, base de uma relação de respeito e de veneração para com ela. Mas irromperam os tempos modernos com os mestres fundadores do saber científico, Newton, Descartes e Francis Bacon, entre outros. Estes inauguraram uma outra leitura da Terra. Ela não é mais vista como uma entidade viva, mas apenas um realidade extensa (res extensa), sem vida e sem propósito. Por isso, ela vem entregue à exploração de seus bens e serviços por parte dos seres humanos em busca de riqueza e de bem estar. Ousadamente afirmou alguém: para conhecer suas leis devemos submetê-la a torturas como o inquisidor faz com o seu inquirido até que  nos entregue todos os seus segredos.
A Terra-mãe que devia ser respeitada, se transformou em Terra selvagem a ser dominada. Ela não passa, segundo eles, de um baú de recursos infinitos a serem utilizados para o consumo humano.
Neste paradigma não se colocava ainda a questão dos limites de suportabilidade do sistema-Terra nem da escassez de seus bens e serviços não renováveis. Pressupunha-se que eles seriam ilimitados e poderíamos infinitamente progredir em direção do futuro.
Hoje tomamos consciência de que a Terra é finita e seus bens e serviços são  limitados. Já encostamos nos limites físicos da Terra. Um planeta finito não pode suportar um projeto infinito. Os dois infinitos, dos recursos e do futuro, imaginados pela modernidade se revelaram ilusórios. Os bens e serviços não são infinitos nem o progresso poderá ser infinito porque não é universalizável para todos. Se quiséssemos generalizar para toda a humanidade o bem estar que os países opulentos desfrutam – já se fizeram os cálculos para isso – precisaríamos dispor de pelo menos de três Terra iguais a nossa.
A preocupação que sempre orientou a relação  dos modernos para com a Terra foi esta: como posso ganhar mais, no menor tempo possível e com o mínimo de investimento? O resultado desta voracidade gerou um arquipélago de riqueza rodeado por um oceano de miséria.
O PNUD de 2008 o confirma: os 20% mais ricos consomem 82,4% de todas as riquezas mundiais, enquanto os 20% mais pobres tem que contentar-se com apenas 1,6%. É uma injustiça clamorosa e criminosa que uma ínfima minoria monopolise o consumo e controle os processos produtivos de praticamente todos os países. Estes implicam a devastação da natureza, a criação de escandalosas desigualdades e a falta de solidariedade para com as gerações presentes e futuras. E por fim,  a condenação à miséria e à morte prematura das grandes maiorias da humanidade. Nenhuma sociedade poderá revindicar ser humana, justa e pacífica quando assentada sobre tanta iniquidade social e perversa inumanidade.
Não é sem razão que o aquecimento global e os desequilíbrios do sistema-Terra sejam atribuidos principalmente a esse tipo de organização social e econômica montada pelos seres humanos.
Se queremos conviver humanamente precisamos de um outro estilo de habitar o planeta Terra que tenha como centro a vida, a Humanidade e a Mãe Terra. Para este modelo, a preocupação central é: como viver e produzir em harmonia com a Terra, com os ecossistemas e com os outros seres vivos, buscando o “bem viver” das atuais e das futuras gerações. Como viver mais com menos?
Somente esse novo paradigma civilizacional respeita a Mãe Terra e garante sua integridade e vitalidade.
É neste contexto que se resgatou a visão da Terra como Mãe. Já não se trata da percepção ancestral dos povos originários mas de uma constatação científica. Foi mérito de James Lovelock  e de Lynn Margulis nos anos 70 do século passado e antes deles, do russo Wladimir  Vernadski ainda nos idos de 1920, terem comprovado que a Terra é um superorganismo vivo que permanentemente articula todos os elementos necessários para a vida de forma que ela sempre se mostra apta a produzir e a reproduzir vida.
Durante milhões e milhões de anos o  nível de oxigênio na atmosfera, essencial para a vida, se manteve em 21%; o nitrogênio, responsável pelo crescimento, em 79%; e o nível de salinização dos aceanos em 3,4% e assim todos os demais componentes que garantem a subsistência do sistema-vida.
Não somente há vida sobre a Terra. Ela mesma é viva, um superorganismo que se autoregula para manter um equilíbrio favorável à  existência e à persistência da vida. Foi denominada de Gaia, deusa grega, responsável pela fecundidade da Mãe Terra.
Para mostrar como a Terra é realmente viva, aduzamos um exemplo do conhecido biólogo Edward Wilson: “num só grama de solo, ou seja em menos de um punhado de terra, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a seis mil espécies diferentes”(A criação, 2008, 26). Efetivamente, a Terra é Mãe e é Gaia, geradora de toda a biodiversidade.
O ser humano representa aquela porção da própria Terra que, num momento avançado de sua evolução e de sua complexidade, começou a sentir, a pensar e a amar. Com razão, para as linguas neolatinas, homem vem de humus que significa terra fecunda e Adão, na tradição hebraico-cristã se  deriva de adamah que em hebraico quer dizer terra fértil. Por isso o ser humano é a Terra que anda, que ri, que chora, que canta, que pensa, que  ama e que hoje clama por cuidado e proteção.
A visão dos astronautas comprova esta simbiose entre Terra e Humanidade. De suas naves espaciais, exclamavam: “daqui de cima, olhando este resplandecente planeta azul-branco, não há diferença entre Terra e Humanidade; formam uma única entidade; e nós, mais que como povos, nações e raças, devemos nos entender como criaturas da Terra, como filhos e filhas da Terra”. Somos a própria Terra consciente e inteligente.
Entretanto, olhando a Terra não de fora e de longe, mas de perto e de dentro nos  damos conta de que nossa Mãe está crucificada. Possui o rosto do terceiro e quarto mundo, porque vem sistematicamente agredida e violada.  Quase a metade de seus filhos e filhas padecem fome, estão doentes e são condenados a morrer antes do tempo.
Por isso, significa um sinal de amor concreto para com a Mãe Terra as políticas sociais que muitos paises estão realizando em favor dos mais necessitados.  Podemos referir como exemplar o projeto Fome Zero  e a Bolsa Família  do governo do Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva. Em menos de 8 anos devolveu dignidade a 50 milhões de pessoas que agora podem comer três vezes ao dia e sentir-se cidadãos incluídos.
É nossa obrigação baixar a Terra da cruz, tratá-la, curá-la e ressuscitá-la. Está em nossas mãos um documento precioso, um dos mais belos e inspiradores dos iníncios do século XXI, a Carta da Terra. Ela nasceu da consulta de milhares e milhares de pessoas de 46 paises e de sugestões surgidas de todos os grupos, desde  indígenas, comunidades pobres, igrejas, universidades e centros de pesquisa e outros. Concluída no ano 2000 foi assumida em 2003 pela UNESCO como “instrumento educativo e uma referência ética para o desenvolvimento sustentável”
A Carta da Terra compreende a Terra como viva e como nosso Lar Comum. Apresenta pautas concretas, valores e princípios que podem garantir-lhe um futuro de esperança desde que a cuidemos com compreensão, com compaixão e com amor, como cabe à nossa Grande Mãe.
Oxalá, esta Carta possa um dia, não muito distante, ser apresentada, discutida, enriquecida por esta Assembléia Geral e ser incorporada à Carta dos Direitos Humanos. Assim teríamos um documento único sobre a dignidade da Terra com seus ecosistemas e a dignidade de cada ser humano.
Para que tudo isso se torne realidade não nos basta a razão funcional e instrumental da tecnociência. É urgente enriquecê-la com a razão emocional e cordial. É a partir deste tipo de razão  que se elaboram os valores, o cuidado essencial, a compaixão, o amor, os grandes sonhos e as utopias que movem a humanidade para inventar soluções salvadoras.
Esta razão emocional nos fará sentir a Terra como Mãe e nos levará a amá-la, a respeitá-la e a protegê-la contra violências e exterminações. Nossa missão no conjunto dos seres é a de sermos os guardiães e os cuidadores desta herança sagrada que o universo nos confiou.
Para terminar, me permito, Senhor Presidente, uma sugerência. Aprovada esta resolução de celebrar todo o dia 22 de abril como  o Dia Internacional  da Mãe Terra, sugiro que se ponha na cúpula vazia no alto da sala desta Assembleia, um globo terrestre, uma destas imagens belíssimas da Terra,  feitas a partir de fora da Terra. Esta imagem nos suscita sempre um sentimento profundo de comoção, de sacralidade e de reverência. Ao olhá-la, recordamos que ai está nossa única Casa Comum, a  nossa generosa Mãe Terra. Ela continuamente nos olha,  nos acompanha e nos ilumina para buscar os melhores caminhos para ela, para nós, para toda a comunidade de vida e para todos os seres que nela habitam.
Minha sugestão vai ainda mais longe: que  no dia 22 de abril de cada ano, em todos os lugares, nas escolas, nas fábricas, nos escritórios, nos laboratórios, nas empresas, nos parlamentos, se parasse e se fizesse um minuto de silêncio para pensarmos em nossa Mãe Terra e renovarmos nosso agradecimento por tudo aquilo que ela nos propicia e renovarmos nossa propósito de cuidá-la, de respeitá-la e de amá-la como amamos, respeitamos e cuidamos de nossas mães.
Estou convencido de que assim como está a Terra não pode continuar. Ela continuará seu curso evolucionáro mas sem nós.
A solução para a Terra não cairá do céu. Ela será  resultado de  uma coalizão de forças ao redor de valores e princípios éticos e humanitários que poderão devolver-lhe o equilíbrio perdido e sua vitalidade original.
Podemos e devemos transformar a eventual tragédia coletiva numa crise que nos acrisola e purifica. Esta crise nos tornará mais maduros e sábios para vivermos dignamente nesse pequeno e belo planeta pelo curto tempo que  nos for concedido. Assim nos sentiríamos como filhos e filhas da alegria, no seio da Grande Mãe que nos acolhe e nos dá vida.
Muito obrigado pela atenção.
Leonardo Boff
Representante do Brasil e da Iniciativa Carta da Terra.
Edifício das Nações Unidas em Manhattan, 22 de abril de 2009.
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* Teólogo. Escritor.
Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/2012/04/22/discurso-no-onu-por-que-a-terra-e-nossa-mae/
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