quinta-feira, 26 de abril de 2012

Fundação Mozilla. A defesa da Internet aberta como um princípio

Um telefone funcionando a partir de um navegador pode revolucionar a telefonia móvel e romper com um dos maiores traços da cultura virtual: o da dependência tecnológica. Cada navegador (browser) para navegar pela Internet vem com uma ideia de mundo. Não é somente uma janela que se abre para ingressar na web, mas a relação que dois milhões de usuários tem com o que há por trás disto. Se o objetivo do Internet Explorer era tornar-se padrão para a venda de licenças da Microsoft Windows e se o Google-Chrome convive de maneira fascinante com o ambiente de aplicativos criados por eles, o Firefox é uma espécie de ar fresco. O Firefox, o programa mais conhecido da Fundação Mozilla, é usado por 500 milhões de pessoas e aposta no software livre, como um método produtivo.

A entrevista é de Mariano Blejman, publicada no jornal Página/12, 22-04-2012. A tradução é do Cepat.

O conceito de web aberta, de um espaço colaborativo, parece ser um tanto abstrato, mas tem maior sentido quando se compara com a forma como funcionam os telefones inteligentes. Na web, cada lugar tem uma direção, os espaços podem ser compartilhados e pode-se participar da construção não só do conteúdo, como também dos aplicativos. No mundo móvel, a Apple e o Google planejam deixar de ser “prosumidores” para se transformarem em meros consumidores. Por isso, a proposta que a presidenta (ou alma mater) da Fundação Mozilla, Mitchell Baker, veio apresentar na Argentina, é tão surpreendente em sua funcionalidade, como também a decisão de efetivá-la na Argentina e no Brasil. “A web deve permanecer aberta”, disse Baker numa longa conversa com Página/12, sentada numa cômoda poltrona, num prédio central de Bueno Aires. Durante quatro anos, a Mozilla organiza um encontro regional para sua comunidade, do qual participa o brilhante CEO Gary Kovacs e Chris Hofmann, outra grande referência.

Dias atrás, a Mozilla anunciou que colocará à disposição, dentro de alguns meses – junto com a Telefónica –, o primeiro telefone administrado integralmente a partir de algo parecido com um navegador, e que seu lançamento mundial será no Brasil e depois na Argentina.

Eis a entrevista.

Por que estão aqui?
Por uma grande quantidade de razões. Nossa comunidade está crescendo e a Mozilla é um pouco diferente de outras organizações. Não vamos a outros lugares para abrir escritórios, construímos ao lado das pessoas. Fazemos software pago, porém sem fins lucrativos. Nos últimos 18 meses, vimos sinais de que na Argentina e no Brasil as comunidades Mozilla estavam crescendo. Por muito tempo, tivemos uma comunidade ativa na Argentina e, no último ano, um número de pessoas viu a nossa mensagem de que era necessário manter uma web aberta. Essa ideia começou a ganhar maior sentido.

Por quê?


A ideia da web aberta é um conceito abstrato. Muita gente vê a Mozilla Firefox como um produto. Gostam do projeto, mas não veem que é uma comunidade aberta. Um navegador é um terreno global e, se ele continua aberto, favorece que as pessoas participem da web, criem seus próprios espaços. Nossa visão, de que a web deve permanecer aberta, começa a ganhar sentido, ao mesmo tempo em que o mundo dos computadores está mudando. Está se deslocando para o mundo móvel, está se perdendo muitas oportunidades de que sejam criadas nossas próprias opções. O consumo na web tem sido aberto, mas se o usuário não pode mudar ou modificar seus produtos, ele se converte num objeto, tornando-se ofensivo. Essa ideia de abertura, promovida pelo mundo móvel, é irônica para a tecnologia e para a sociedade, os sistemas são ferozmente mais fechados que há anos.

E qual é a proposta?

Na Mozilla acreditamos que podemos conduzir uma abertura dos telefones móveis. É positivo que nos aparelhos móveis os usuários tenham controle sobre seus programas, sobre as suas próprias vidas. Durante nove meses, temos trabalhado nessa tecnologia, pois, pensamos que esta é a ideia correta e irá progredir rapidamente. Na Mozilla temos um nome de código que é Boot To Gecko, um clássico nome de desenvolvedores, isto é engraçado porque não tem um sentido diferente do que ele de fato é. Oficialmente nós o chamamos de open web device (dispositivo de web aberta).

Sem nome comercial?
Não. Acreditamos que estamos oferecendo algo que tem sentido aqui, e temos um sócio que nós ajudará a ampliar esta ideia: a Telefónica. Para distribuir telefones necessitamos de um criador de hardware e de um operador telefônico. Não é somente a tecnologia.

Seria necessário recordar a triste história de Meego, o sistema operativo livre desenvolvido no Linux, com a Nokia, que foi interrompido depois que a empresa finlandesa fez um acordo com a Microsoft.

Podemos oferecer o Firefox através da Internet, as pessoas têm computadores de escritório e laptops, porém com os móveis fica mais difícil: tivemos sorte em encontrar a Telefónica, que também chegou à mesma conclusão, a de que a plataforma móvel deveria ser sobre a web. Estamos trabalhando para entregar os primeiros aparelhos este ano, ou no próximo, no Brasil e depois na Argentina. Os chips são da Qualcomm, e ainda estamos organizando os acordos de hardware.

E por que não começam em São Francisco, como habitualmente acontece?

Para os desenvolvedores começou em GitHub (onde se trabalha no software). Esperamos que muita gente se envolva, mas a Telefónica é a líder. A Deutsche Telekom está inovando também, no entanto, a Telefónica é mais rápida, seu plano é de que o primeiro telefone web, muito em breve, seja lançado no Brasil e na Argentina. É um aparelho que pode ter um bom desempenho, por um baixo custo.

O grande desafio é o assunto da conectividade. Se elas perdem as conexões com tarifas reduzidas.

Na Mozilla não resolvemos a questão da conectividade, porém quando as pessoas usam telefones móveis existem alguns aplicativos que estão conectados, mas grande parte não está. Usamos tecnologia para que se executem localmente. Alguns aplicativos estarão no aparelho e outros deverão ser conectados.

Por que isto é possível? Que tecnologia permite fazer um telefone em html?

Eu diria que a razão de existir um telefone web é a determinação. Não se trata de um problema de tecnologia. Para a Apple, o modelo Apple funciona muito bem, eles têm uma enorme determinação naquilo que estão fazendo. Na Mozilla, porém, temos uma clara determinação em pensar num aspecto mais global, em defender o valor da web e estamos organizados para que isto seja assim. Não temos fins lucrativos. Existe algo que as pessoas amam do mundo dos móveis, e há algo que faz com que a web tenha sido exitosa, nos últimos 15 anos. Estamos, cuidadosamente, verificando a maneira de juntarmos estes mundos.

Tomamos um pequenino pedaço de código do Android, que ele tomou do Linux, que é a parte da configuração de hardware. Esse pedaço de código, que se comunica com o hardware, tem sido testado por milhões de aparelhos por meio do Android.

Pegamos isso e colocamos na web. Nada de algo fechado, nada de Apple ou Google: html5, javascript e css. E estamos criando algumas coisas como os acelerômetros, que nos faziam depender do Google ou Apple. Trabalhamos muitos anos em padrões, temos a capacidade de disponibilizá-los para todos.

Ditadura benevolente.


A quantidade de colaboradores distribuídos pelo mundo, que fornecem código e horas de trabalho aos projetos da Fundação Mozilla, excede em dezenas a quantidade de pessoas contratadas pela organização. A Mozilla tem projetos vinculados ao navegador, porém, também ligados ao programa de correio, métodos de identificação e programas relacionados com meios de comunicação, como Mo-Jo (Mozilla Journalism). Na página oficial da Mozilla, certifica-se que esta organização trabalha com a ideia de ser uma “ditadura benevolente”. A diferença dos projetos de software livre, em relação a outros, é que estas comunidades estão baseadas em algo como uma espécie de meritocracia. Trata-se da liderança produtiva e do respeito pelos outros. Não é uma meritocracia perfeita, os seres humanos se gostam e não se gostam, porém a aspiração é que assim seja. Se as pessoas querem trabalhar e seguir suas decisões, então os projetos se desenvolvem. Isto funciona muito bem.

Porém, qual é a ideia da “ditadura benevolente”?

Alguns projetos usam um sistema de ditadura benevolente, que é uma pessoa, suficientemente respeitada, que tem conhecimento para tomar decisões. Ditador não é uma palavra muito boa, porém trata-se de quem toma a melhor decisão. Não é como na política, cada comunidade pode ir e desenvolver seu papel, porém a “ditadura” está relacionada ao fato de que se ninguém toma uma decisão, alguém tem que tomá-la. Essa pessoa fará isso. Numa comunidade devem-se tomar decisões para que as pessoas queiram seguir. Trabalhamos com um sistema de módulos, temos os responsáveis dos módulos e, finalmente, existem duas pessoas: um do lado técnico, Brendan Eich, criador da linguagem javascript, e eu que estou na parte tecnológica.

E se alguém não quer participar, faz a sua própria versão.

Num projeto de software livre, você pode sair e construir outro por conta própria. Você pode querer trabalhar por conta própria e ter sua visão particular, mas as pessoas não vão querer segui-lo. Os projetos de software livre são pensados para “fazer”. Se você não faz nada, fica difícil controlar ou dirigir um grupo. É um tipo de trabalho diferente. É organizado a partir de quem faz cada coisa e de quem é mais respeitado, a abertura do processo faz com que todos possam ver o que se está fazendo. A abertura é a chave, se você escreve o código, se é aberto, com as pessoas podendo vê-lo, você pode fazer mudanças que estejam o tempo todo disponíveis. É fácil para alguém dizer “eu quero trabalhar com essa pessoa”, ou eu posso ajudar, posso melhorá-lo ou que esta pessoa não entende esta parte do mundo, mas que eu entendo. É certo que, em geral, as pessoas gostam de estar com quem faz um grande trabalho. Às vezes são competitivos e, em relação à tecnologia, as pessoas querem trabalhar com os melhores. Assim é que você aprende e melhora.

Os projetos de código aberto abrem passagem, caso as pessoas fizerem coisas interessantes. Até poucos meses, o produto mais conhecido da Mozilla, o Firefox, teve um tranquilo segundo lugar na chamada “guerra pelos navegadores”, sendo, então, ultrapassado pelo Google-Chrome e relegado a um terceiro lugar. Em termos quantitativos, o êxito do uso do Chrome parece estar afetando, diretamente, mais ao Explorer do que o Firefox.

Como você percebe que está o Firefox?

Antes do Firefox, o convencional era de que os navegadores não importavam. As pessoas não se preocupavam com isso. Até o momento da chegada da Mozilla, não havia inovação, não se investia, não havia capital de risco para fazer navegadores. Com a Mozilla foi diferente: não falhamos, o navegador importa sim, tem a ver com o que é mais importante para as pessoas. É algo que você pode tocar. Não importa quantos serviços há fora se alguém não pode acessar isso. O Firefox entrou no mercado e demonstrou a diferença em se ter um navegador aberto. E não era uma questão de dinheiro, o Netscape tinha muito dinheiro e não pôde ganhar. É uma questão de comunidade, de se compreender que quem controla o navegador controla a web.

Abrimos esse mercado e entraram competidores, a concorrência é boa. O Safari não é realmente um concorrente, mas o Chrome sim. O Google tem algumas ideias, que nós pensamos que são boas. Eu penso que o Chrome tem um mercado muito grande. Porém, se ele vencesse voltaríamos ao mundo da Microsoft. O Chrome é um competidor, mas quando combinado com toda a informação de GDoc, Plus, transforma-se numa grande quantidade de tecnologia em poder de uma só companhia. Eu conheço muita gente do Google, e acredito que realmente seja uma empresa incomum. Se eu tivesse que eleger uma companhia para comprar minha empresa, seria o Google, porém não quero que me comprem.

Como resume a diferença entre o Firefox e o Chrome?

A diferença conceitual central é que se os seus Google Apps e a sua integração com esse mundo são importantes para você, então usa o Chrome. Se o que você quer é ar, tendo uma web aberta e experimentando muitas outras coisas, que vão além do Google, então a sua opção é o uso do Firefox. Se você tem interesse pela privacidade, embora para algumas pessoas isso não interesse, se para você interessa a privacidade, então você usa o Firefox.

Como é a relação da Mozilla com o Google?


Todos na web têm uma relação com o Google, e mais ainda nos Estados Unidos. Nós separamos a busca de nosso produto (NdR: há um acordo comercial que acaba de ser aprovado para três anos), não combinamos nada mais. E o Google jamais pediu, nem jamais tratou de afetar o Firefox. Em alguns casos, trabalhamos bem com o Google e, às vezes, eles tomam decisões tecnológicas que são perturbadoras. Dá a sensação de que eles fazem coisas demais.

Não temem gerar dependência?


Nossas receitas, em relação ao Google, vêm de acordos por buscas. Nesse ponto, preocupo-me mais com a web, no todo, do que com a Mozilla. Mais de 500 milhões de pessoas usam o Firefox, mas não imagino que Google não possa estar interessado nisso. Entre nós, não temos visto nenhum indício de que queiram prejudicar o Firefox. Eles são uma empresa um pouco diferente, e a concepção de web da Mozilla é importante. Eles reconhecem que o que fazemos é importante, não apenas por questões altruístas, mas por necessidade. Buscamos formas de diversificar rendas, não temos feito isso porque não tivemos necessidade para isso. Porém, com o mundo móvel haverá novas oportunidades.


Há alguns anos, a Fundação Mozilla, por meio de Mitchell Baker, fez declarações políticas públicas, em relação a problemáticas e legislações debatidas nos Estados Unidos. Na história da Mozilla isto é uma novidade. A força da mudança sempre esteve mais sintonizada com um lado produtivo, do que com declarações políticas. A Mozilla se pronunciou, no The New York Times, contra a posição de se afetar os princípios de neutralidade e contra a proposta de legislação do SOPA, que tentou passar pelo Congresso estadunidense, em janeiro. “Decidimos fazer declarações sobre temas políticos que estão afetando a Internet, porque é muito perigoso ficarmos quietos”, disse Baker.

Por que decidiram mudar de postura?

As propostas de legislação para a Internet são profundamente chocantes. A respiração está em perigo, não só em regimes repressivos, mas também nos Estados Unidos. Temos sido muito conservadores na Mozilla, por nos envolvermos em atividades legislativas. Somos uma organização sem fins lucrativos. As companhias comerciais podem fazer lobby para tudo o que querem, mas se tratamos de construir algo pelo bem das pessoas, não podemos fazer lobby. A Mozilla é uma organização global, se dizemos que somos globais e temos uma comunidade global, mas gastamos todos os nossos recursos nos Estados Unidos e na Europa, seria uma contradição. Na Mozilla, não queremos fazer programas específicos dos Estados Unidos. Temos sido conversadores, talvez muito, por opinar sobre as legislações. Porém, as leis que eles apresentavam eram tão ruins, que mesmo sendo nos Estados Unidos, afetam a web de maneira global, por isso que construímos um plano de trabalho. Na Mozilla não tratamos de exportar o sistema político ou econômico a nenhuma parte do mundo. Tratamos de construir a web, nos envolveremos nas coisas que afetam a governança da Internet e da web, porque pensamos que é possível termos um impacto positivo.
Em 1994, Mitchell Baker foi uma das primeiras contratadas pelo extinto navegador Netscape, naquela primeira tentativa contra o Explorer. Trabalhou junto com Jim Barskdale na adequação das equipes e na escritura das licenças públicas, tanto do Netscape, como da Mozilla. Em julho de 2003, America On Line (AOL, que havia comprado o Netscape há algum tempo) decidiu fechar a divisão que administrava o Netscape, dando início à Fundação Mozilla e, finalmente, ao navegador Firefox. Há alguns dias, a Microsoft Corporation comprou a AOL, um pacote de patentes, entre as quais incluíam uma grande quantidade de ideias desenvolvidas pelo Netscape, dos tempos em que Baker estava ali.

Que sentimento lhe vem ao saber que agora a Microsoft tem aquelas patentes?

É um sentimento muito engraçado... Nessa época, muitos de nós estávamos no Netscape. Estávamos envolvidos nas patentes... as patentes de software são um problema em muitas frentes. O Netscape e a AOL, foram os criadores, há 15 anos, já estão quase expirando.

O sistema de patentes é um problema grave. Como se corrige isso?

O problema é que a questão das patentes está na Constituição dos Estados Unidos. Algumas pessoas dizem que o sistema de patentes deveria ser abolido, em alguns países seria mais fácil, porém, nos Estados Unidos estão dentro da Constituição. Uma das coisas que podemos ver é se há melhores formas para patentear de uma maneira aberta. O Google e a Apple fazem guerras pela questão do hardware, nós temos problemas tentando fazer standards. A Apple tem um grande comércio de hardware e gasta muito tempo para defendê-lo. Diariamente, temos brigado para termos vídeos que não tenham patentes. Perdemos a primeira batalha. Atualmente, as tecnologias que ganham têm patentes, estamos verificando se podemos vencer a próxima batalha.
-----------------------
Fonte: IHU on line, 26/04/2012


Nenhum comentário:

Postar um comentário