sábado, 14 de abril de 2012

'Livro é uma forma de rir da vida', diz Héctor Abad

Escritor colombiano fala sobre 'Livro de Receitas para Mulheres Tristes'

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
 
O escritor colombiano Héctor Abad nunca se importou com gêneros ou fronteiras entre gêneros literários. O exemplo mais radical dessa transgressão fronteiriça chama-se Livro de Receitas para Mulheres Tristes (Companhia das Letras, tradução de Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni, 144 págs., R$ 32). É um livro inclassificável, no bom sentido. Nele estão presentes gêneros desprezados por críticos e temas que refletem os múltiplos interesses desse jornalista, escritor e tradutor de 54 anos, nascido em Medellín, que se formou em letras pela Universidade de Turim e estudou filosofia e medicina antes de se dedicar à literatura e ganhar vários prêmios por essa atividade.
Como você considera Livro de Receitas para Mulheres Tristes, um esboço para adotar gêneros literários esquecidos pela modernidade?
Você tem razão quando diz que Livro de Receitas para Mulheres Tristes é uma volta a gêneros literários aos quais a modernidade não se acostumou muito. Seu modelo mais direto é A Arte de Amar, de Ovídio. Quando escrevi esse livro, tinha acabado de ler, em verso, uma tradução de Ars Amatoria. Além disso, estava doente, convalescendo, e vivia o tempo todo trancado no quarto, em minha casa. Via o mundo da minha cama. Foi a leitura de Ovídio, misturada ao 'modo' mental da doença quando não é grave, que me deu a chave para essa experiência. A primeira redação ficou marcada pelos versos de Ovídio em latim, mas logo resolvi dissolver esses excessos poéticos numa prosa digerível. Outro modelo do livro são as obras de autoajuda, muito modernas. Só que as uso numa chave irônica: dou conselhos de amor, de cozinha e de sexo, mas não quero enganar ninguém. Os livros de autoajuda não servem para nada. O meu tampouco "serve" num sentido utilitário, ainda que muita gente se console pelo fato de saber que não há consolo.
Seu livro começa uma uma referência à felicidade. Alguma circunstância em particular o levou a escrever essas receitas mágicas de felicidade e fórmulas para seduzir?
Creio que foi, como disse, o fato de estar doente. Quando um doente confia que sua dor vai aliviar, sente uma espécie de leve euforia porque, sem poder levantar-se, já começa a sentir que a felicidade está à espera. Um doente que se recupera não vê a hora de voltar a comer, a caminhar, a fazer sexo, a tudo o que a doença o impede de fazer. Ficar doente é bom por um único motivo: ajuda a valorizar muito mais a saúde. E o livro pretende dar receitas suculentas para aproveitar mais a vida. Não digo para alcançar a felicidade, que é uma palavra e uma sensação superestimada - e, inclusive, um pouco ridícula: ao que podemos aspirar é a um certo bem estar que dá a ausência de dor e enfermidade, o que já é muito.

 "Gostaria também de escrever uma utopia pós-moderna em que ninguém seria emigrante ou imigrante: todos nos movemos pelo vasto mundo e não estamos condenados a nascer e morrer no mesmo lugar. Nascer na Ucrânia e morrer no Brasil, como Clarice Lispector, ou nascer em Buenos Aires e morrer em Genebra, como Borges, esse é o modelo a seguir:  viver onde nos leve o vento, a gana, o ar."


Ser invisível é um dos grandes problemas de que sofrem as mulheres, segundo as leitoras de Livro de Receitas para Mulheres Tristes, mas isso não se aplica à sua mãe, nada invisível e autora até famosa de um verdadeiro livro de receitas. Você acredita que sua vocação é fazer uma literatura dedicada a provocar uma revisão no papel das mulheres na literatura e na vida?
Todos somos mulheres. Os embriões, inclusive, começam como mulheres. De repente um cromossomo desenvolve testítulos e a testosterona nos masculiniza, nos converte numa anomalia. Os homens são prescindíveis. Inclusive, desde Dolly, já nem mesmo somos necessários para a reprodução. Ao menos em teoria, as mulheres poderiam ser autosuficientes. Mas uma humanidade de um sexo só seria muito aborrecida: isso sabem as mulheres e nós, homens. E agora, inclusive, aceitamos com alegria outras opções: bissexuais, hermafroditas, transexuais. O mundo é divertido porque é diverso. Mas me parece normal que a um escritor homem lhe fascinem as mulheres, e que a uma escritora mulher fascinem os homens. Decifrar o enigma do outro sexo: nisso nos vai metade de nossa vida. Eu cresci rodeado de mulheres, vivo com mulheres e, no entanto, não as entendo. Mas, pelo menos, aprendi uma coisa: a ouvir o que me dizem.
A literatura colombiana não tem do que reclamar. Há Ballesteros, Héctor Abad. Qual a sua relação com seus contemporâneos? O que tem a literatura colombiana de específico?
Temos a sorte de escrever numa língua muito antiga, o castelhano, com uma grande tradição literária. Além disso, no século 20, os escritores adquiriram certo prestígio social e cultural: ser escritor já não é um ofício desprestigiado de bêbados e maricas. Milhares de pessoas se dedicam à literatura e, como são tantos a tentar, alguns acabam se destacando. Para formar um grande enxadrista, é preciso colocar todo o país a jogar: era o que se fazia na antiga União Soviética.
O que significa para você o Livro de Receitas para Mulheres Tristes?
Para mim, o livro não passava de um divertimento, uma forma de rir da vida, da doença, da infidelidade, da morte. Nessa época era uma pessoa bastante triste que não queria escrever sobre coisas tristes. Quando me tornei mais sereno e alegre, escrevi um livro triste como El Olvido Que Seremos. Quando era triste de verdade, escrevia livros alegres como esse, porque pensava que o ditado espanhol estava certo: quem canta, seus males espanta. Outro precedente eram os manuais de instruções de Julio Cortázar. Seu jogo irônico sempre me encantou, e tratei de usá-lo também no livro. Mas, a ironia não impede que existam receitas que funcionem (do ponto de vista culinário) e conselhos que possam ajudar a resolver problemas tão sérios como a virgindade, a impotência dos maridos etc..
Você falou certa vez que uma das características do romance contemporâneo é o hibridismo, a transmutação de gêneros. Como analisa esse fenômeno literário? Seria apenas um artifício formal ou uma questão do desejo da nova geração de dialogar com tempos passados e esquecer o compromisso moderno da transgressão?
Quando alguém lê a literatura anterior ao advento do romance, um gênero hesitante que se tornou quase obrigatório, se dá conta de que nos tempos de escassa liberdade política havia uma grande criatividade textual: fábulas, rimas, romances, sonetos, conselhos amorosos, poéticas em verso, manuais de cosmética, diatribes políticas em rima - Günther Grass acaba de tentar mais uma, sem muito êxito poético, há que se dizer. A modernidade nos presenteou com gêneros estupendos como a divulgação científica, da qual Steven Pinker e Bill Bryson são exemplos brilhantes, mas se esqueceu da versatilidade e das possibilidades infinitas das literatura. Além disso, também esqueceu de escrever contos sobre como podemos refletir, aconselhar, disputar, rir, seduzir, combater. Seria necessário reviver muitas coisas, como, por exemplo, os panfletos e as novelas filosóficas, como as de Voltaire.
Você viveu em Berlim como bolsista. Como vê a situação dos estrangeiros na Europa e analisa o problema das corrrentes migratórias no século 21?
O mundo não se parece nada aos esquemas sociológicos do século 19 com os quais tentamos entendê-lo. O mundo terá de chegar a ser uma espécie de Europa Comunitária Mundial, com liberdade de circulação, uma economia complementar e uma legislação trabalhista igualitária. Primeiro haverá blocos continentais, suponho, e logo esses blocos terão de se ajudar mutuamente. Chegaremos, então, algum dia, a um governo mundial e à paz mundial de Kant. Mas estou sonhando, escrevendo uma utopia : a propósito, outro dos gêneros anteriores à modernidade que se perdeu. Gostaria também de escrever uma utopia pós-moderna em que ninguém seria emigrante ou imigrante: todos nos movemos pelo vasto mundo e não estamos condenados a nascer e morrer no mesmo lugar. Nascer na Ucrânia e morrer no Brasil, como Clarice Lispector, ou nascer em Buenos Aires e morrer em Genebra, como Borges, esse é o modelo a seguir:  viver onde nos leve o vento, a gana, o ar.
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FONTE: Estadão on line, 14/04/2012
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