domingo, 22 de abril de 2012

Retrato de uma senhora "cult"


El Pais / El Pais
Patricia e um de seus gatos: ela "morreu por amor mil vezes na vida.
 E matou por isso, seguidamente, em seus livros", diz biógrafa
 
A imagem que se tem de Patricia Highsmith (1921-1995) costuma ser a de uma mulher estranha, antipática, que preferia viver reclusa com seus gatos a manter contato com qualquer outro ser humano. Esse clichê tem lá seu fundo de verdade, mas talvez não seja a imagem ideal para abarcar a intrigante personalidade da autora de livros como "Pacto Sinistro" e "O Talentoso Ripley". Ao menos é o que leva a crer a nova (e bastante completa) biografia da escritora, "A Talentosa Highsmith", escrita pela dramaturga americana Joan Schenkar.
"Patricia Highsmith era muito complicada e interessante. Por metade de sua vida ela foi o oposto da imagem de mulher reclusa e mal-humorada criada, em grande parte por ela mesma, e divulgada para a imprensa no fim da vida dela. Foi um prazer explorar esse clichê e mandá-lo pelos ares. O que não quer dizer que ela não fosse mal-humorada e excêntrica", diz Joan ao Valor. "Mas é exatamente o modo fascinante como a senhorita Highsmith desvia de cada expectativa que se tinha das mulheres em meados do século XX que a torna uma artista tão vibrante."
O livro é o resultado de oito anos de pesquisas e incontáveis entrevistas com quem conheceu bem a escritora, que elevou a literatura policial a algo mais que meras tramas rocambolescas envolvendo personagens lineares. Os heróis de Patricia, como o célebre Tom Ripley (que surge em cinco livros), têm um lado fortemente sombrio, mas são cheios de nuances. Os assassinatos da intriga jamais são o ponto principal: o importante em suas obras são antes as implicações psicológicas desses atos sobre os personagens.
"Nos seus melhores livros, era a psicologia dos seus 'heróis criminais', como ela mesma os chamava, que monopolizava sua obsessão. Em um livro como 'The Price of Salt', seu único romance sem homicídios, o amor se torna o crime, e as amantes, duas belas mulheres, saem impunes. Em vários sentidos, o trabalho de Patricia nos forneceu a mais extensa anatomia da culpa e do escapismo da segunda metade do século XX", diz Joan.
Patricia Highsmith nasceu em 1921 no interior do Texas e cresceu longe do pai. Foi uma garota introvertida e já na infância manifestava um lado nebuloso que ecoaria em seus personagens: desejava a morte do padrasto. Começou escrevendo HQs (o fez por sete anos, mas tinha vergonha e costumava dizer que passou apenas meses na função). O primeiro romance, "Pacto Sinistro" (1950), já lhe trouxe fama, virando filme pelas mãos de ninguém menos que Alfred Hitchcock. Futuramente, diretores do calibre de Wim Wenders, René Clément, Michel Deville e Anthony Minghella também adaptariam suas obras para o cinema. "Patricia, que sempre odiava os longas baseados em seus livros, gostava do filme de Hitchcock. E ela achava que Alain Delon - cuja beleza extrema e andrógina chamava sua atenção - foi um excelente Ripley em 'O Sol por Testemunha' (1960), de René Clément", relata a biógrafa.
Entre um livro e outro, Patricia levava uma vida tumultuada: bebia demais e atraía inimigos por seu antissemitismo (curiosidade: a autora de sua biografia é de origem judaica). Nunca teve um comportamento convencional. Por isso mesmo, Joan resolveu fugir das convenções e evitou a ordem cronológica, preferindo organizar a vida da escritora a partir de suas obsessões. Que, aliás, não eram poucas. "Era obcecada pelo trabalho, e trabalhar duro era como uma religião para ela. Escrevia a impressionante marca de cinco a oito páginas por dia, além de desenhar, fazer mobílias, cuidar do jardim, criar esculturas, escrever pelo menos quatro cartas e incluir notas em seus cadernos e diários. Nada ajuda mais um escritor do que bons hábitos de escrita."
A escritora tinha também mania de compor listas e de desenhar mapas. Em um arroubo highsmithiano, aliás, Joan criou ela também um mapa em seu livro, mostrando os locais mais relevantes da vida da escritora. "Retracei sua vida no Greenwich Village, incluí um mapa que mostra cada lugar de importância na vida de Patricia em Nova York e como ela usou esses locais em seus livros. Descobri que cada lugar onde ela viveu uma história de amor se tornou o endereço em que um assassinato foi cometido em alguma de suas obras", revela.
Amor e morte andavam lado a lado na mente de Patricia Highsmith. Ela nunca aceitou bem sua homossexualidade. Por várias vezes tentou se envolver com homens e chegou até a fazer terapia para se "endireitar". Em 1952, escreveu a história lésbica "The Price of Salt", mas só ousou publicá-la sob pseudônimo (anos mais tarde, assumiu a autoria, mas mudou o título para "Carol"). A escritora amou com intensidade diversas mulheres, mas sofreu muito.
"Apesar do fato de que a relação amorosa mais alegre e menos tumultuada em um trabalho de Patricia ter sido entre dois caracóis em 'Águas Profundas', nenhum outro autor americano foi mais inspirado pelo amor que ela. Patricia morreu por amor mil vezes na vida - e matou por isso, seguidamente, em seus livros. E muitos dos crimes que ela cometeu na ficção eram substitutos do ato de amar - ou foram cometidos a partir de decepções amorosas", diz Joan. "O amor foi sempre o pior dos problemas para Patricia. Ela poderia viver para amar, mas jamais viver com o amor."
Além das decepções amorosas, a escritora teve que conviver até o fim da vida com uma grande frustração: o pouco-caso em seu país natal com sua obra (sua ficção era tida nos Estados Unidos como subliteratura). Por isso, viveu seus últimos anos na Suíça. "Os europeus foram mais rápidos que os americanos a reconhecer que aquele certo tipo de 'ficção policial' - afinal, Dostoiévski e Proust são autores, igualmente, de histórias de crimes - também poderia ser considerado literatura. E eles entenderam que categorizações de qualquer tipo sempre traem o trabalho artístico que estão tentando descrever." Patricia pode até ter sobrevivido a muitos romances fracassados, mas essa mágoa ela jamais foi capaz de superar.
"A Talentosa Highsmith". Joan Schenkar. Trad.: Ricardo Lísias. Globo, 816 págs., R$ 74,90 
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Reportagem Por Bruno Ghetti | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 21/04/2012

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