domingo, 27 de maio de 2012

Chivas é poder

Luis Fernando Veríssimo*

O uísque foi a bebida de uma época, e o tilintar das pedras de gelo no copo, seu som característico
Contam que, proibido de beber uísque pelo seu médico, o cronista Rubem Braga enchia com gelo um copo que ficava sacudindo perto da orelha. Assim não tinha o uísque mas tinha a sua trilha sonora como consolo. O uísque foi a bebida de uma época, e o tilintar das pedras de gelo no copo o seu som característico. O Brasil deve muito da sua música e da sua literatura, do fim dos anos 1940 até mais ou menos o começo dos 1980, ao Johnny Walker e seus comparsas. Hoje ainda se bebe uísque, mas ele não é mais o fluido vital de uma geração, como foi para Tom e Vinicius e como o que faltava no copo do Rubem Braga.



Uma história da época. Alguém tinha fama de grande anfitrião, entre outros motivos porque tinha sempre uma garrafa cheia de Chivas Regal para receber os amigos. Nem todos os que frequentavam seu apartamento podiam comprar um uísque bom como o Chivas Regal, um luxo como aquele, e recebiam cada nova garrafa cheia com “obas” de satisfação. Que uísque. Que anfitrião. Que amigo! Até entendiam que o limite, a cada noite, fosse uma, e só uma, garrafa de Chivas Regal. O que importava, se na reunião seguinte lá estaria outra garrafa cheinha, para felicidade dos convidados e maior prestigio do anfitrião?



Deduziram que o anfitrião tinha um estoque de Chivas Regal. Era isso?

– Não, não – explicou o anfitrião. – Tenho um fornecedor. Compro regularmente.

“Gastando uma fortuna”, foi o que passou pela cabeça de todos. Além de generoso, o anfitrião era um homem de posses e, possivelmente, de influência, talvez um dos pró-homens da República. Quem tinha sempre uma garrafa cheia de Chivas Regal para servir aos seus convidados mostrava mais do que bom gosto. Chivas Regal era poder. Chivas Regal era a marca de um espirito nobre. E a admiração pelo anfitrião só aumentava.

Até que um dia.



Um dia um dos convidados, ao primeiro gole, decretou:

– Isto não é Chivas.

Abriu-se uma clareira de espanto. Como? Que audácia. Que acinte. Que falta de educação. O que o anfitrião iria pensar? O anfitrião apenas sorriu e perguntou:

– O que é então?

– Ou muito me engano, ou é Old Cock – disse o outro, citando o nome de um uísque inferior (o nome verdadeiro não é este, claro) que, diziam, era usado na limpeza de motores e dava azia terminal.

E o denunciante contou que, sem ninguém ver, fizera uma pequena marca no rótulo da garrafa de Chivas esvaziada na reunião anterior. E lá estava a pequena marca no rótulo da garrafa recém-aberta. A garrafa era sempre a mesma. O anfitrião só mudava o conteúdo, enchendo-a de uísque barato e mantendo no alto o seu prestigio. Que, claro, acabou – pelo menos no grupo da época – com a revelação de que, durante todo aquele tempo, ele servira Old Cock ou até coisa pior em garrafa de Chivas.



Hoje o anfitrião é um conhecido lobista em Brasília, onde continua servindo Chivas falso. E com sucesso. A maioria dos seus convivas não sabe distinguir Chivas de Old Cock ou coisa pior. E na política, mais do que qualquer outra atividade humana, o importante é a aparência. O moralista pode ser um sem-vergonha disfarçado, o honesto apenas um corrupto mal cantado. Basta parecerem que são o que não são. O que vale é o rótulo, não o conteúdo.

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* Jornalista. Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 27/05/2012
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