quinta-feira, 31 de maio de 2012

De costas para o futuro

Fernando Reinach*

Preste atenção nestas três frases: 1) "Quando John Lennon morreu, 32 anos atrás, eu estava em Nova York." 2) "Quando John Lennon morreu, 32 anos na frente, eu estava em Nova York." 3) "Quando John Lennon morreu, 32 anos abaixo, eu estava em Nova York."
Essas frases são exemplos de como diferentes culturas relacionam a dimensão espacial e temporal da realidade. Na maioria das culturas ocidentais imaginamos o futuro como estando localizado à nossa frente e o passado, atrás ("A vida é longa, é preciso ir em frente."). Mas, para os mais de 2 milhões de habitantes da Bolívia, Peru e Chile que falam a língua aimará, o passado se encontra à nossa frente e o futuro, às nossas costas.
A palavra "nayra" é usada para descrever a posição de um objeto à nossa frente e também um acontecimento no passado. A palavra "qhipa" descreve algo no futuro e também algo que está atrás de nós. Nessa comunidade, quando alguém se refere ao futuro normalmente gesticula apontando para trás das costas e quando se refere ao passado aponta o espaço à sua frente.
Já os yupno, que habitam um vale isolado em Papua-Nova Guiné, quando se referem ao passado apontam para baixo e ao se referirem ao futuro, para cima.
Não há dúvida de que cada um de nós se localiza, a cada momento, em um local do espaço (estou sentado na frente de um computador) e em um determinado momento no tempo (são 10h15 do dia 30 de maio), mas não existe nenhuma relação física obrigatória entre essas duas dimensões de nossa existência. Por que associar o futuro à nossa frente ou às nossas costas ou a um plano mais baixo? Por que o Egito de Cleópatra estaria atrás de nós? Essa associação, em princípio, não seria necessária.
No caso da associação presente nas línguas ocidentais (futuro na frente e passado atrás), talvez a explicação esteja no ato de andar. Ao andar, olhamos para a frente, e o local onde estaremos no futuro próximo está na nossa frente. Já o local por onde passamos recentemente está nas nossas costas.
Mas os aimarás parecem ser mais sofisticados. Quando se pergunta a um deles por que o futuro está nas costas e o passado, na frente, ele tem uma boa explicação. O futuro é desconhecido, inacessível aos nossos sentidos, e ainda não presente na nossa memória. É lógico para eles que algo desconhecido e fora do campo de visão esteja atrás. Já o passado é conhecido, já foi vivido, está presente na nossa memória e disponível para exame. É natural que ele esteja no nosso campo de visão, na nossa frente.
No caso dos yupno, os antropólogos ainda estão tentando entender por que o passado está associado ao fundo do vale onde vivem e o futuro às partes mais altas das montanhas. Uma possibilidade é de que ao longo do tempo a tribo tenha habitando cada vez lugares mais altos.
O fato de nosso cérebro criar esse tipo de relação arbitrária entre duas dimensões físicas (tempo e espaço) nos leva a acreditar que essa relação é natural. A maneira como essa associação se cristalizou em diferentes culturas talvez tenha implicações importantes no desenvolvimento das sociedades e da estrutura de nossa memória. Será que a crença ocidental de que o futuro pode ser previsto (vislumbrado ainda que de maneira opaca na nossa frente) se originou da associação do tempo futuro ao espaço à nossa frente? Se imaginássemos que o futuro está atrás (como os aimarás) e indisponível para nossos sentidos, teríamos tanto interesse em desenvolver conhecimentos que permitem prever o futuro, como as leis da física e da química? E como seria nossa relação com a memória do passado se, para nosso cérebro, se ela estivesse colocada à nossa frente? Viveríamos mais ligados ao passado que ao futuro?
O mais interessante dessa descoberta é que ela demonstra, mais uma vez, que a realidade habitada pela nossa consciência é uma construção de nosso cérebro elaborada durante o processo evolutivo. É muito provável que essa associação tenha sido útil e vantajosa para nossos ancestrais que caçavam nas estepes africanas, se preocupavam com o alimento das próximas horas, mas não com a geometria euclidiana ou com a extinção dos dinossauros. Nossa percepção que o futuro está diante de nós é uma ilusão criada por um cérebro que durante milênios evoluiu dentro de um animal no qual o andar para frente era a atividade dominante. Nessas condições, frente e futuro ficaram associadas e por isso damos as costas para o passado e caminhamos para o futuro. Somos realmente um animal muito estranho, habitado por uma mente que, na melhor das hipóteses, recebe do cérebro uma visão distorcida da realidade.
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* BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: Where time goes up and down. Science vol. 336 pag. 411 2012 Fernando Reinach (fernando@reinach.com)
Fonte: Estadão on line, 31/05/2012 
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