terça-feira, 29 de maio de 2012

O Deus de Etty Hillesum

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A vida como um grande diálogo
Dialogar no grande átrio do quotidiano, onde indistintamente, se cruza o humano, em “carne e osso” (Husserl), é o apelo forte deste tempo. Partir da pergunta é sempre um bom começo. C.S. Lewis no seu diário interroga-se: «Porque parece assim presente (Deus) quando nós, para dizer com franqueza, não O procuramos?». E se for Ele a vir ao nosso encontro? (Jo 1,14) É necessário colocarmo-nos no modo de discernimento do mistério que se está a viver. Não há linguagem absoluta para descrever este tipo de abertura. Deus é a origem desta aproximação. A mistagogia do quotidiano, de “olhos abertos” (Metz), medeia a presença do mistério na quotidianidade.
A imagem que Etty apresenta de Deus é uma frescura de esperança no meio dos escombros. Crer em Deus significa viver de tal maneira e com tanta intensidade que não é possível viver como se Ele não existisse. «A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, meu Deus, um único grande diálogo» (Etty, Páginas místicas). Os seus escritos revelam um ser humano com uma rara capacidade de viver e de assumir dialogicamente em si a dor do mundo. O diálogo situa-se no drama da alteridade. É na perceção e na vivência do absurdo humano que esta hebreia faz a sua incursão no mundo de Deus, redescobrindo a fé escondida no seu «coração pensante». Na sua disposição crente não há separação entre as diversas dimensões do acreditar (fé-razão, afeto-pensamento). O encontro do homem com Deus «não tem lugar, senão no milagre e no paradoxo da fé» (Bouillard).

Ordenar os afetos
Etty sente a debilidade e a impotência para travar não só a crueldade dos acontecimentos mas também os ímpetos das suas emoções e afetos. A desorientação inicial, experiência transversal a todo o humano, não a impede de olhar o presente tensionalmente. Aprendeu a viver no «mundo que Deus criou [que] continua belo apesar de tudo» (Diário). Conhecer-se a si mesma, possuir o sentimento de si, é condição de abertura à exterioridade, ao sentimento do outro, enquanto realidade presente que a afeta. Aqui se une a feliz expressão do «coração pensante da barraca» (Diário) onde a sua presença floresce como «um ramo de amendoeira» (Jr 1,11) no meio do nada. O ser humano «é uma cana pensante» (Pascal) no qual residem razões e emoções que escapam à mensurabilidade científica.
Leitora atenta das grandes narrativas (da Sagrada Escritura a Dostoievski), de Rilke aprende o conceito de espaço interior do mundo. Isto significa conter em si a experiência de Deus e a experiência literária; manter a consciência da sua corporeidade como ser no mundo; estar diante dos outros numa atitude afetiva de compaixão vivida; dialogar abertamente com Deus; «aprender a ajoelhar-se» diante do Mistério porque «é preciso ousar pronunciar o nome de Deus» (Diário).

Poética da Esperança
Mulher atenta e entranhada nos desafios do seu tempo, Etty interroga-se sobre o novo mundo que estava a surgir. Procura uma síntese harmoniosa: «Deve manter-se o bom contacto com o efetivo mundo atual, e tentar estabelecer o nosso lugar nele […]. Viver plenamente, externa e interiormente, nada de sacrificar a realidade exterior a favor da interior, e vice-versa de igual modo, eis uma bela tarefa» (Diário). A sua vida é um tender para o amor absoluto de Deus que a desassossega radicalmente a amar absolutamente o mundo. «Estou grata por não me teres deixado ficar sossegada a esta secretaria, mas teres-me colocado no meio do sofrimento e das relações desta época» (Diário).
Uma poética da esperança que reintegra a tragicidade sem a ocultar. A sua originalidade está no modo como Etty antecipa escatologicamente a sua presença diante da iminência do sofrimento e da morte. Ela sabia o que a esperava. Mas como encarar este futuro ofuscado pela tragicidade? «Esta conjuntura da época em que vivemos é algo que consigo suportar, que posso aguentar sobre os ombros sem vergar sob o seu peso e consigo mesmo perdoar a Deus por permitir que tudo seja como provavelmente deve ser. Termos amor suficiente dentro de nós para conseguirmos perdoar a Deus» (Cartas 1941-43). Este excesso de confiança torna-a disponível para o amor humano e de exercer a sua compaixão na contingência concreta do campo de concentração de Westerbok. Sem uma preparação interior seria impossível sobreviver a tragicidade do momento.

Aprender a crer e a ver
A fé de Etty, que paulatinamente se torna teologal e oracional, é um «aprender a viver artisticamente», de tal modo que a sua «porção ateia racional e crítica» se vai desvanecendo. Aprender a viver crendo em abertura ao futuro pela via do silêncio, da solidão, da atenção, da imaginação, da leitura e da escuta. Uma cisão entre teologia e mistagogia torna inabitável o universo cristão porque nos coloca sempre na necessidade de credibilizar a nossa fé face às mutações da história. Uma mistagogia que não é reação (ao racionalismo, indiferentismo, secularismo…) mas descoberta de uma presença que nos habita e nos torna «livres para acreditar» (M.P. Gallagher) no interior da pluralidade.
É uma via que é capaz de revelar o mistério da graça nas experiências vividas e que torna explícito o que era implícito no encontro iniludível com Deus. Num rasgo da contemporaneidade, Etty descobre progressivamente a presença de Deus na sua vida. Não a antecede uma prática ou pertença religiosa. Dialoga com um Deus discreto, por vezes vulnerável, que «precisa de ajuda»! A atitude crente abre-nos para a invocação e para o encontro com a alteridade, «que lentamente vai-nos tornando capazes de ver» (Bento XVI). Um desafio a crer para quem habita na margem mas também a acreditar de novo para quem habita no centro de uma pertença religiosa!
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Reportagem por João Paulo Costa
Fonte: Site português:  http://www.snpcultura.org/o_Deus_de_etty_hillesum.html

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