quarta-feira, 20 de junho de 2012

Geografia de Deus.

Massimo Faggioli*

Qual é a relação entre religião e geopolítica? Dois livros, publicados na Itália e nos EUA, analisam o papel do cristianismo e da desocidentalização do sistema político internacional.

As religiões têm uma visão própria do mundo, não só do ponto de vista filosófico, mas também do ponto de vista geopolítico: falar da Europa como "berço espiritual do cristianismo" é teologizar um assunto geopolítico que tem a ver com o Império Romano e Carlos Magno mais do que com Jesus Cristo.

Às vésperas do aniversário do edito de Constantino (313-2013) e em uma Europa que poderia se preparar, do ponto de vista geopolítico, para perder a Grécia com todo o favor à Turquia ou à Rússia, é salutar redescobrir o vínculo entre religião e geopolítica em um âmbito ocidental, e não confinado ao mundo islâmico. Dois recentes trabalhos publicados na Itália e nos EUA lançam luz sobre essa questão.

O primeiro é o enorme volume de Andrew Preston, Sword of the Spirit, Shield of Faith: Religion in American War and Diplomacy [Espada do Espírito, escudo da fé: Religião na guerra e na diplomacia norte-americana] (Ed. Knopf, 2012, 832 páginas), concebido pelo jovem autor nos EUA justamente nos meses de lançamento da guerra no Iraque em 2003.

O livro reconstrói o papel do cristianismo como teologia e como religião civil nos EUA a partir do século XVII e das guerras dos colonos britânicos contra os índios nativos americanos e contra os franceses católicos. O livro continua, com o segundo capítulo, ilustrando o fato de que o cristianismo protestante na América do Norte funcionou como uma "teologia da libertação" ante litteram – libertação da escravidão do Império Britânico – por ocasião da Revolução Americana.

Os pais fundadores do sistema constitucional norte-americano (não particularmente infundidos com o espírito religioso, do ponto de vista, ao contrário) lançaram as bases para os três princípios fundamentais da política externa norte-americana: "unilateralismo republicanismo e separatismo" (p. 89). O período posterior, da primeira metade do século XIX, é o dos EUA como "império benevolente", mas ainda assim império, que compartilhou com o cristianismo das grandes potências europeias o binômio típico do século XIX colonial, "expansão e missão".

A diferença consiste na doutrina do "destino manifesto", expressão cunhada pelo democrata jacksoniano John O'Sullivan, segundo a qual os EUA são uma nação "criada pela mão de Deus" e "enviada por Deus a uma missão abençoada às nações do mundo": em outras palavras, "a democracia norte-americana nada mais é do que o cristianismo traduzido nas relações políticas entre homens" (p. 135).

A Guerra Civil de Lincoln e a abolição da escravatura, nesse sentido, assumem para Preston o valor de primeira guerra humanitária. Apenas poucas décadas depois, no início do século XX, tem-se a presidência de Wilson e a "segunda cruzada" contra a Alemanha, com base em uma plataforma moral necessária para a nova ordem mundial.

As décadas posteriores, para Preston, veem uma "terceira cruzada", a de Franklin Roosevelt contra Hitler, e uma "quarta cruzada" dos presidentes Truman e Eisenhower contra o comunismo soviético. São interessantes os capítulos dedicados ao Holocausto e ao significado moral da Segunda Guerra Mundial para os EUA, e à casta dos "sacerdotes da Guerra Fria" George Kennan e John Foster Dulles.

O oitavo e último capítulo se concentra sobre os anos de Kennedy a Reagan e sobre o nascimento de uma "política externa judaico-cristã" graças a três fatores: o papel do Holocausto na consciência moral norte-americana, a vontade dos judeus norte-americanos de defender a sua identidade no mundo moderno e o desenvolvimento do multiculturalismo como oportunidade para os judeus norte-americanos para afirmar a sua própria específica "não originalmente norte-americana" em um ambiente amigável como o do melting pot.

A passagem de Reagan a George W. Bush vê o desenvolvimento de uma visão paralela (mas não idêntica) à católica anticomunista de João Paulo II a uma relação de conflito (sedado por ambas as partes por razões de conveniência) com a visão geopolítica do catolicismo na era do choque de civilizações .

O epílogo – "Uma quarta cruzada" – dedica somente poucas páginas ao 11 de setembro de 2001 (dê-se o mérito disso ao autor) e ao "realismo cristão" de Barack Obama, em contraste com os "idealismos" dos seus antecessores, em particular George W. Bush.

Um segundo livro recente que ilumina a questão, com um olhar mais amplo do ponto de vista global e confessional, é Religioni tra pace e guerra [Religião entre paz e guerra], editado por Valter Coralluzzo e Luca Ozzano (Ed. Utet, 2012, 272 páginas). Na primeira parte, concentra-se sobre religião, conflito e peacebuilding, fundamentalismo e terrorismo religiosos, religiões e direitos humanos, religião e União Europeia, religião e globalização, e a relação entre os atores religiosos transnacionais e o Vaticano.

Na segunda parte, dedicada a casos de estudo específicos, analisam-se o papel político da religião nos EUA de Obama, religiões e nacionalismos, Oriente Médio e subcontinente indiano, e religiões e política externa na Ásia do Pacífico.

Vittorio Emanuele Parsi, no prefácio, lembra que assistimos hoje a uma "lenta e progressiva tendência à desocidentalização do sistema político internacional", e esse fato coloca novamente em questão os parâmetros de referência institucionais, culturais e de sentido criados pelo pós-1945.

Ainda mais claramente, na introdução, os dois editores, Coralluzzo e Ozzano, evidenciam a decadência do "postulado westfaliano", ou seja, "a convicção, sufragada pela experiência histórica da Europa no século XVII (a Guerra dos Trinta Anos concluída pelo Tratado de Westfália de 1648), de que a privatização da religião e a secularização da política são uma passagem obrigatória para a consolidação de uma ordem internacional, já que, quando se politiza e se torna um elemento central da política mundial, a religião acaba desencadeando efeitos destrutivos, representando uma séria ameaça à própria existência da sociedade internacional".

Isso nos lembra como "a disciplina acadêmica das relações internacionais foi se consolidando sob a égide incontestável do paradigma da secularização".

Todos sabem que a União Europeia é uma federação de Estados todos surgidos da experiência histórica do cristianismo europeu, mas cuja linguagem oficial é cuidadosamente depurada de todo elemento religioso. A partir de um amplo espectro de forças políticas e intelectuais europeias, de esquerda como de direita (nisso muito distantes das do outro lado do oceano), as temáticas religiosas e inter-religiosas são consideradas não relevantes para o futuro da Europa.

A ilusão de que o livre mercado cria uma Europa alargada, automaticamente pacificada, recalca, a partir de uma margem diferente mas especular, aquela periodização que Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo (1931) definia a respeito do mundo futuro não mais medido pela escorrer dos anos "depois de Cristo" , mas sim "depois de F.", ou seja, depois de Ford.

A hipótese da irrelevância política da religião era um wishful thinking ainda nos anos de crescimento econômico: na Europa da crise financeira, a esperança de que a mistura entre recessão econômica prolongada e exclusão social com base étnico-religiosa não produza efeitos explosivos é um daqueles milagres em que até as elites tecnocráticas são obrigadas a crer.
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A análise é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 13-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 20/06/2012

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