terça-feira, 19 de junho de 2012

A imortalidade risível? (1)

João Paulo Costa

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Antecâmara
«O rosto é belo quando reflete a presença de um pensamento, ao passo que o momento do riso é um momento em que se não pensa. Mas será verdade? No instante em que surpreende o cómico, o homem não ri: o riso vem imediatamente a seguir, como uma reação física, como uma convulsão da qual todo o pensamento está ausente. O riso é uma convulsão do rosto e na convulsão o homem não se domina, sendo ele próprio dominado por qualquer coisa que não é nem a vontade nem a razão» (M. Kundera, A Imortalidade).

Pode a literatura ajudar-nos a descobrir o mistério que envolve a vida? Pode o romance reler a realidade plasmando-a? O livro A Imortalidade do escritor checo Milan Kundera é uma narrativa da imortalidade risível. Um gesto belo eterniza a presença humana. Um bom livro é sempre uma recriação, construção ficcional, a partir do real, que dá a possibilidade ao leitor de se expropriar de si mesmo apropriando-se do sentido Outro das coisas. Não está tudo na letra! Se o romance abre portas para uma nova leitura do espaço e do tempo onde nos construímos, então aí torna-se colóquio vivo e tempo do espírito. M. Proust escreve que «a leitura desperta-nos para a vida pessoal do espírito», e por isso, «na medida em que ela é a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, o seu papel na nossa vida é salutar» (Sobre a leitura).
Amor, morte e futuro são os transcendentais presentes na estrutura de cada ser humano que o escritor checo reflete a partir do desejo de imortalidade. A ideia de imortalidade kunderiana é uma presença que se constrói mediante a afetação interpessoal (física-sentimental-cognitiva). Há um desejo de imortalizar o passado no presente e este no futuro. Esta ideia aparece exemplarmente no gesto corporal (um sorriso) de uma mulher que deseja eternizar a sua juventude e a sua beleza fixando-se num jovem rapaz, como se naquele ato cumprisse toda a sua adolescência. A «sedução de um gesto afogado não-sedução do corpo. Mas a mulher, embora devesse saber que deixara de ser bela, esquecera-o nesse instante». O gesto surge como um signo não-verbal, que não envelhece, mas eterniza porque é belo. Aqui se projeta o presente para um passado que já fora futuro. A visão linear do tempo, um fim, nem sempre nos deixa ver que o futuro se faz presente!
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O «gesto do desejo de imortalidade conhece apenas dois pontos de referência: o eu, aqui, e o horizonte, ao longe: e apenas duas noções: o absoluto que é o eu e o absoluto do mundo». Este desejo de imortalidade, presente nos gestos e comportamentos, de permanecer na memória coletiva do mundo, condiciona as formas de estar e ser na vida com os outros. «As pessoas não só já não tentam parecer bonitas quando estão com outras pessoas, como não tentam sequer evitar parecer feias!». A ânsia de se fazer notar (opiniões vãs) e o uso do ruído (necessidade de chamar atenção e de não ser esquecido) conjugam-se nefastamente.
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Há nesta visão uma crítica ao paradoxo da sociedade da comunicação que vive da aparente defesa da liberdade de expressão quando no real se reduz à opinião. À ideia de imortalidade está associada a falta de privacidade com que as figuras públicas se deparam. «Lembro-me de que na minha infância, quando se queria fotografar alguém, se tinha sempre que pedir licença… e depois, um dia, ninguém mais pediu licença». Socorre-se de exemplos recriados e reconstruídos que são episódios reais ou inventados das suas vidas. Esta falta de privacidade é provocada pela avidez do homem comum em querer sugar a vida privada das celebridades, como forma própria de elas mesmas se imortalizarem, mesmo sob o risco de diluírem a identidade própria. «A preocupação com a própria imagem, é essa a imaturidade incorrigível do homem. É tão difícil ficarmos indiferentes à nossa imagem! É uma indiferença que ultrapassa as forças humanas. O homem só a conquista depois da morte».
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João Paulo Costa
Imagens: Auguste Rodin
© SNPC | 19.06.12
Fonte:  http://www.snpcultura.org/a_imortalidade_risivel_1.html

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