sexta-feira, 13 de julho de 2012

Diferentes, divergentes, mas muito próximos

Mauro Rosso*

Lima Barreto e Machado de Assis, verdadeiros, natos, parentes literários. Pô-los "frente a frente", qual espelhos paralelos, exibir seus elementos em comum - que existem, e significativos -, mas também e em especial suas diferenças - que são marcantes -, constitui-se em estimulante exercício de interações e ilações, "vis-à-vis" a contraposições e conflagrações.
Mais do que dois grandes escritores, dois epígonos da literatura brasileira, essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista - ainda que sob formas, modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma e modo divergentes, analisaram os cenários políticos, históricos, institucionais, sociais, culturais de suas épocas e a existência do homem - importando menos o tipo diverso de sociedade em que viveram do que a similitude de seus procedimentos e o modo de observar as reações dos indivíduos entre si: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-os em sua essência, revelando sutilezas, contradições e ambiguidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviesados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais.
Ambos muito próximos de várias maneiras - ainda que bastante diferentes. Simetria e paralelismo social os criaram em ambientes que não os dominantes, os colocaram em situação inicial desfavorável e os elevaram, não sem esforços e afinco idealístico, plena e lucidamente conscientes de seus talentos e méritos, desejosos de superação e ascensão - muito mais em Machado do que em Lima -, mas gradativamente tomados, ambos em igual teor, pelo ceticismo, pelo desencanto, pela desilusão, progressivamente se afastando das convivências, do ambiente social dominante, a observar, cada um a seu tempo e modo, a dissolvência de mundos vinculados e correlatos - Machado, com serenidade e conciliação; Lima, com a consciência convulsiva da "automarginalização".
Claro que aproximar o criador de Policarpo Quaresma do autor de "Dom Casmurro" é tarefa audaciosa, a exigir cuidados especiais e um trabalho de profundidade. A começar por tentar estabelecer paralelismos e confrontos entre um escritor do século XIX e outro do século XX, como que o transplantar (ou "transcorrer" temporalmente) -, mas com a certeza de que, em se tratando de Machado, seria/é possível, tão lúcido, anunciador, antecipador como era, desconfiando e denunciando ainda nos oitocentos a sociedade fragmentada, desequilibrada, injusta, que existia e, pior, se projetava para o século seguinte - na qual Lima viveria e se debateria, com sofrimento e agressividade, veemente e vigoroso no discurso militante. Nessa linha e raciocínio, não temo errar: Machado de Assis precursor de Lima Barreto - unidos histórica e indissoluvelmente, escritores do fim de um século e do começo de outro.
Praticamente nada contemporâneos: Machado nascido em 1839, Lima em 1881, só viveram "em comum" por cerca 27 anos; Machado morre em 1908, Lima em 1922 - a considerável diferença no nascimento já não é tanta na morte. Não coincidem os respectivos períodos de vida literária, mas o projeto literário, muito - tantos os temas em comum: o indivíduo, a vida, a morte, o amor, a mulher, a sociedade, o poder, a injustiça. Porque, assim como Lima, Machado, embora em outras formas, formato, estilo, linguagem e foco, também fez, a seu modo, da literatura "missão".
Por trás das aparências distintas encontram-se afinidades significativas. Socialmente, o ambiente refinado a que Machado se esforçou para ascender se espelha e é revertido no ambiente rude em que Lima cresceu e optou conscientemente por viver. Cultural, filosófica e ideologicamente, Machado "infiltrado" no estamento social e político dominante para dissecá-lo, denunciá-lo, miná-lo pela sátira sarcástica, retrata os poderosos, os esnobes, os inúteis, os ociosos, os tolos; Lima, "automarginalizado" do sistema social e econômico para criticá-lo, rejeitá-lo, repudiá-lo pelo discurso militante, pelo grito panfletário, mas da mesma forma pela ironia satírica, pela alegoria sarcástica, desenha os dominadores, os títeres, os opressores, os oprimidos, os ridículos.
Machado, testemunha do crepúsculo do Império e do estertor da escravidão, bem como do alvorecer da República - conservado, imune, o patriarcalismo; Lima, vivente da ascensão de um novo regime, a sedimentação do patrimonialismo, o fortalecimento do poder - mantido, intocável, o patriarcalismo. Em Machado, a dissolução de um mundo já esvaziado das formas de prestígio tradicionais, receptáculo de forças novas e estranhas, uma dinâmica desconhecida e inquietante; em Lima, a formação de um mundo carregado de novas relações e padrões, pleno de forças avassaladoras, a eclosão de uma opressiva dinâmica.
Machado, retratista dos proprietários, dos que vivem de renda, dos senhores e patrões, dos elegantes e aristocratas, dos fugazes poetas, literatos e artistas, também dos serviçais, dos agregados, dos inquilinos; Lima, desenhista dos bovaristas, dos arrivistas, dos espoliados, dos destituídos, dos doutores, dos falsos sábios, dos nefelibatas. Ambos, acima de tudo, dois grandes comentaristas da espécie e da condição humanas: não tanto o indivíduo isolado, mas sua conduta social e sobretudo a sociedade que os abrigava.
Ambos perceberam nitidamente que os efeitos nunca se desvinculam das causas, e isso presente e atuante em suas obras, coerente com suas respectivas origens, vivência e estratificação social. No universo autoral de Lima e Machado, política, história e sociedade estão intensamente presentes, a impulsionar enredos, monitorar a escrita, situar-nos em seus respectivos contextos históricos.
Ao dotarem suas obras desses elementos, nitidamente compatíveis e associados, nada mais fizeram do que esclarecer no plano da literatura as exigências que as sociedades em crise de seus respectivos tempos demandavam às condutas interior e exterior dos indivíduos e ao modo como esses reagiam. Ambos se tornaram mestres em construir, flagrar e analisar a complementaridade e a intercambialidade intrínseca desse processo - a política reflexo da história, uma e outra determinante dos rumos da sociedade.
Em Lima o estilo e linguagem vibrantes, pulsantes, irregulares em seu ritmo discursivo, contra os padrões, as normas e as convenções, destoante do ambiente cultural de seu tempo e da prática textual aristocrática de então, sem subterfúgios ou camuflagens. Contraposto a Machado, de escrita fina, equilibrada, a prosa elegante, algo refinada, sob os ritos do respeitável e por todos aceita, obedecendo aparentemente às convenções da sociedade - algo aqui e ali sutilmente desobediente, "subversivo" -, mas feita também de silêncios e cesuras, de não ditos e reticências.
Na seara ficcional, mister observar a figura feminina em um e em outro. Em ambos, irrestritos defensores dos direitos femininos de toda ordem, aparecem mulheres notáveis, quase todas elas superiores aos homens: em Lima, se dependentes dos homens e submissas ao casamento e à moral que lhe era imposta pela sociedade, carentes de educação e oportunidades profissionais, são muito mais fortes, em sua maioria ostentam atitude e comportamento progressistas, avançados; em Machado, sem ser propriamente heroicas, edificantes ou modelares, são marcantes, mesmo quando fúteis, frívolas, volúveis.
Entre elas, e entre personagens masculinos, diálogos e relações possíveis, bastante plausível uma conversibilidade entre protagonistas - a ficção de um e de outro, em confronto, permite especular: Olga e Capitu, Clara dos Anjos e Virginia, Edgarda e Sofia, Cló e Flora, Adélia e Marcela, a Lívia barretiana e a Lívia machadiana. Tudo indica que Gonzaga de Sá, por exemplo, visitaria Aires; Policarpo Quaresma ficaria satisfeito em conversar com Quincas Borba; Numa e Brás Cubas, parceiros e cúmplices, trocariam confidências indiscretas, compartilhariam amantes, tramariam ações escusas.
De modo geral, os personagens de Lima e Machado, se não frequentam, em tempos diferentes, os mesmos tipos de ambientes sociais - é claro poder-se afirmar que transitam pela seara comum da ficção literária -, circulam, nas respectivas em épocas distintas, por um mesmo cenário urbano: a cidade do Rio, Lima e seus "amados subúrbios" (crítico das áreas nobres, em especial Botafogo), Machado, o centro e certos bairros da hoje Zona Sul. A cidade carioca, espaço geográfico inerente a um e a outro autor, revelando semelhanças e similaridades, convergências e confluências, identificabilidades e igualações.
Incontestável que a par do parentesco literário, de pontos e elementos em comum, persistem neles diferenças e divergências, contrastes e confrontos - os quais poderiam menos desmentir um Lima oposto de Machado, e vice-versa, e mais uma complementaridade. Sob tal ótica e lente, procurei encontrar em Lima e Machado possíveis e plausíveis conexões dessa complementaridade lastreada na convergência das divergências - ou, valendo-se da expressão do compositor popular, nos reflexos "do avesso do avesso do avesso".
--------------------
* Mauro Rosso é pesquisador, ensaísta, escritor; autor, entre outros, de "Contos de Machado de Assis: Relicários e Raisonnés" (2008); "Lima Barreto e a Política: os 'Argelinos' e Outros Contos" (2010); "Machado de Assis, Crônicas: "A+B" e "Gazeta de Holanda" (2011); e "Crônicas Políticas de Machado de Assis" (no prelo)
 Fonte: Valor Econômico on line, 13/07/2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário