sexta-feira, 13 de julho de 2012

Um convite a Contardo Calligaris

Barbara Gancia*


 

Alguém consegue explicar a má vontade dos médicos tapuias em relação aos Alcoólicos Anônimos? 

A COLUNA do Contardo Calligaris de ontem, que menciona seu amigo alcoólatra esti­mulado a voltar a beber pela mulher foi um clássico. Um clássico equívoco a ser evitado.
Costumo ler o Contardo de joe­lhos. Mas não ontem. Ali ele trivia­lizou um assunto que não só conhe­ço bem, como sou testemunha diá­ria dos efeitos devastadores que produz, inclusive pela negligência com que é tratado. Não dá para en­tender a má vontade dos profissio­nais do país com os Alcoólicos Anô­nimos, uma irmandade reconheci­da no mundo todo pelos excelentes serviços que presta.
O texto de Calligaris me remeteu ao hepatologista de Tarso de Cas­tro, que chegou ao cúmulo de libe­rar o jornalista, dependente, para tomar uma taça de vinho ao dia.
Não sou especialista, apenas al­guém que padece de uma doença que a Organização Mundial da Saú­de define como "incurável, pro­gressiva e mortal". E posso atestar que o texto serviu de luva para rea­firmar o propósito de que proble­mas relativos ao álcool devem ser tratados dentro da sala dos Alcoóli­cos Anônimos, bem longe do divã do psicanalista.
Veja. Quem conhece minima­mente os 12 Passos dos AA sabe que o programa não oferece garantias. Mas, a dada altura, por negligência ou mero infortúnio, Contardo diz o seguinte: "O homem frequentou os AA e deu certo". Ora, para nós, membros dos AA, ao contrário, o programa funciona, se muito, "só por hoje", nunca "dá certo", inexis­te esse conceito. Eu posso voltar à ativa daqui a 20 minutos, corro esse risco, é da natureza da doença.
Um dos maiores predicados dos AA, inclusive, é esse. O de me colo­car o tempo todo no presente para que eu consiga reduzir a angústia que a lembrança do passado me traz e diminuir a ansiedade que o peso do futuro pode vir a me causar.
Mas de que importa a filosofia dos AA? Bom mesmo é teorizar, não é para isso que serve psiquiatra? Cal­ligaris menciona ainda que, acon­selhado pelo seu grupo, o su­jeito passou por uma "internação de um ano". De onde tirou um ab­surdo desses, só Deus sabe. Inter­nação longa nos AA? Em 20 anos de Alcoólicos Anônimos nunca vi essa picaretagem. Aliás, é cada vez mais comum no país a prática criminosa da internação longa que isola o de­pendente da família e coloca o mé­dico como intermediário todo-po­deroso, sem que ninguém fiscalize.
Adoro ler o Contardo, ele me ex­plica muitas coisas. Mas não me ex­plica tudo. A psicanálise é aleijada da dimensão espiritual, um cami­nho muito indicado, senão impres­cindível, para alguém como eu, que produz pouca endorfina, dopami­na e outros opiatos naturais por conta dos anos que passei maman­do destilados. Jung já advertia so­bre isso a Bill e Bob, os dois sujeitos que fundaram os Alcoólicos Anôni­mos. Está documentado.
Fico me perguntando a quem Cal­ligaris refere os casos mais graves de dependência. Não gosto nem de pensar na resposta. Em todo caso, uma atividade não interfere na outra, não é mesmo? O colunista é um, o médico é outro. Vamos dei­xar assim.
E deixar também um convite para que o amigo Contardo venha assis­tir a qualquer próxima edição que eu for dar da palestra "Do Fundo da Garrafa ao Domínio da Minha Vi­da", em que conto um pouco sobre meu trágico envolvimento com o álcool e como consegui sair desse inferno. Quem sabe ele não se ani­ma a vir conhecer uma sala dos AA por dentro? Só por hoje. Funciona. 
-------------------
* Jornalista. Colunista da folha
barbara@uol.com.br
@barbaragancia
Fonte: Folha on line, 13/07/2012
Imagem da Internet 

Nenhum comentário:

Postar um comentário