sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A filosofia está viva

 Carla Rodrigues*

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 Sloterdijk: apesar de sua aposta no fim da filosofia nos anos 80, sua “Crítica da Razão Cínica” (1983), 
agora lançada no Brasil, acabou por provar o contrário, tornando-se um best-seller

"Há um século a filosofia está morrendo. No entanto, ela não consegue morrer porque sua tarefa não foi cumprida." O diagnóstico foi feito pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk nos anos 1980, quando a filosofia parecia ter perdido a importância dos anos 1960 e a rebeldia dos anos 1970. Nascido em 1947, Sloterdijk não integrou a geração glamourosa nem a rebelde e apontou o fim da filosofia em "Crítica da Razão Cínica", 720 páginas que passam em revista a história do pensamento ocidental. Logo depois de lançado, em 1983, o calhamaço vendeu 150 mil exemplares, tornando-se o livro de filosofia mais vendido na Alemanha desde a Segunda Guerra e provando que a filosofia estava viva e passava bem, obrigada. São essas 720 páginas que a Estação Liberdade publica no Brasil, depois de um investimento de R$ 50 mil e cinco anos de trabalho de uma equipe de cinco professores, estudiosos brasileiros da obra do autor. A empreitada contou com o apoio do Instituto Goethe para a publicação de dois mil exemplares a R$ 96,00.
Coordenados por Marco Antonio Casanova, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e importante tradutor da obra de Heidegger no país, os outros quatro integrantes da equipe de tradutores já estudavam a obra de Sloterdijk na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e se debruçaram sobre o texto em um trabalho de comparação com as outras traduções, como a espanhola e a francesa.
Para quem pretendia concordar com Sloterdijk e apostar no fim da filosofia, a boa notícia é o crescimento, no mercado brasileiro, de títulos de grandes filósofos vivos, resultado do investimento em traduções de qualidade. Lançado na Alemanha por ocasião do bicentenário de "Crítica da Razão Pura" - clássico de Immanuel Kant que seria ao mesmo tempo o auge e o início do suposto fim da filosofia -, "Crítica da Razão Cínica" é o primeiro de uma lista de 34 livros escritos por Sloterdijk, dos quais 6 já estavam traduzidos no Brasil pela Estação Liberdade. A aposta no autor começou por títulos menores, mas só em tamanho. O primeiro a chamar a atenção dos editores foi "Regras para o Parque Humano - Uma Resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo", traduzido em 2000, apenas um ano depois da edição alemã, impulsionado pelo imenso debate que provocou entre Sloterdijk e o filósofo Jünger Habermas, com trocas de acusações mútuas que em muito se distanciaram de um debate filosófico.
Se foi a polêmica nas páginas dos jornais alemães que trouxe Sloterdijk para o Brasil, a amplitude de sua obra ajudou a consolidar o interesse nas traduções. Títulos como "O Desprezo das Massas", debate sobre o que o autor chama de "luta cultural", tem atraído pesquisadores na área de comunicação, e "Se a Europa Despertar", na área de ciência política, ambos textos mais pontuais. O mesmo não se pode dizer dos três volumes da série "Esferas", cada um com 800 páginas, cujos direitos autorais já foram comprados pela Estação Liberdade. "Nosso público-alvo são alunos e professores universitários da área de ciências humanas em geral, não apenas na filosofia", diz um dos editores, Fabio Bonillo.

Publicação dos filósofos corre em paralelo 
ao fenômeno de popularização da filosofia, 
seja por obras básicas, 
seja por títulos de autoajuda

Vem da Itália outro grande filósofo vivo: Giorgio Agamben, de quem "O Homem sem Conteúdo" acaba de chegar às prateleiras. Lançamento da Autêntica, com tradução do professor de filosofia Claudio Oliveira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), estudioso da obra do autor e coordenador da recém-criada série "FilôAgamben", que integra a coleção "Filô". Coordenada por outro professor de filosofia, Gilson Iannini, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), a coleção "Filô" está subdividida em séries dedicadas a autores, como "FilôBenjamin" e "FilôEspinosa", ou a temas, como "FilôMargens" e "FilôEstética". "O Homem sem Conteúdo" é o primeiro livro de Agamben, publicado na Itália em 1970, e inaugura a série "FilôAgamben", que já tem direitos autorais comprados, tradutores contratados e previsão de lançamentos para os próximos anos: "Ideia da Prosa", "A Comunidade Que Vem", "O Tempo Que Resta", "Bartleby ou a Fórmula da Criação", "Meios sem Fim", "A Potência do Pensamento".
Nascido em Roma em 1942, Agamben também é destes autores que provam a força da filosofia. O mercado brasileiro já dispõe de parte de suas obras traduzidas, com títulos lançados pela Editora UFMG e pela Boitempo Editorial. Um de seus grandes êxitos recentes, "O Que É o Contemporâneo", é publicação da pequena Argos, editora da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (SC), cuja aposta em títulos de peso se constata por títulos como "A Filosofia do Como Se", do alemão Hans Vaihinger (edição de luxo, capa dura, 724 págs., R$ 79,00). Apoiada pelo Instituto Goethe, a tradução foi parte da pesquisa de doutorado em letras, defendido na UFF, do pesquisador Johannes Kretschmer.
"Estamos completando o álbum de figurinhas", diz Claudio Oliveira. Agamben é um filósofo de grande produtividade e apenas 12 dos seus 29 livros estavam traduzidos no Brasil quando o professor carioca começou a trabalhar na tradução, há pouco mais de um ano. "Se é verdade que outras editoras importantes já publicaram Agamben, é também verdade que, em alguns anos, a Autêntica será referência no Brasil para sua obra, pois já negociamos os principais títulos dele", argumenta Iannini, o coordenador da coleção "Filô". Agamben não é o único filósofo contemporâneo que a Autêntica vai publicar. O catálogo da coleção inclui autores como Slavoj Zizek e Arthur Danto, além de filósofos contemporâneos, como o francês Gilles Deleuze, nome consagrado do pensamento francês do século XX.
O investimento da editora prevê o lançamento de 20 a 25 títulos por ano, o que equivale, em dinheiro, a R$ 500 mil, gastos em direitos autorais e em pagamento de tradutores. "A área de filosofia pede tradutores especializados, que conheçam a obra do autor", afirma Oliveira. Fazem parte de uma edição bem-acabada as notas do tradutor e um posfácio em que ele comenta, situa e contextualiza a importância da obra. Também é indicação de qualidade da tradução a capacidade do tradutor de localizar, como fez Oliveira, as referências bibliográficas usadas pelo autor nas edições brasileiras das obras citadas, grande ajuda para brasileiros que estejam iniciando os estudos sobre Agamben.
 
Giorgio Agamben: o importante filósofo italiano tem títulos publicados por várias 
editoras brasileiras, ao lado de Michel Foucault, Slavoj Zizek e Gilles Deleuze
 
"O mercado editorial ainda não se deu conta do potencial da área de filosofia", acredita Oliveira, que vê nos investimentos da Autêntica os primeiros sinais de que, com a expansão do ensino de filosofia, a tendência é que esse campo de publicação continue crescendo. É o que anima outras coleções da editora, como "Ensino de Filosofia", voltada para textos de reflexão sobre o que é ensinar filosofia, e "Estudos Foucaultianos", já com nove títulos assinados por comentadores da obra do francês Michel Foucault. A edição bilíngue latim-português da "Ética" de Spinoza, trabalho do professor Tomaz Tadeu, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lançado em 2007, marcou os dez anos da editora e comprovou que investimentos em filosofia podem dar resultado: são 424 páginas em capa dura, a R$ 68,00, já na terceira edição.
A edição de grandes filósofos vivos e complexos corre em paralelo ao fenômeno de popularização da filosofia, seja por obras de introdução que inundam as prateleiras, seja por títulos de autoajuda, dos quais "Mais Platão e Menos Prozac" é o mais emblemático representante, seja por livros em que os próprios filósofos se dedicam a tornar acessível seu pensamento, facilitando as vendas. É o que está acontecendo, por exemplo, com o americano Michael J. Sandel. Proclamado pela editora Civilização Brasileira como o "filósofo político mais importante da atualidade", o professor de Harvard lança sua segunda tradução: "O Que o Dinheiro não Compra", que chega no rastro do sucesso de "Justiça - O Que É Fazer a Coisa Certa", edição dos cursos que já levaram mais de 15 mil alunos à sala de aula.
Há outra linha rentável de traduções, a de autores que ganharam grande notoriedade na mídia, como o esloveno Slavoj Zizek. Suas obras interessam também pelo caráter ideológico. É como Ivana Jinkings, diretora editorial da Boitempo, justifica o investimento nos livros dele, dos quais 7 entre os 16 títulos já publicados estão traduzidos pela editora. O lado da obra de Zizek mais voltado para a psicanálise reúne outros cinco títulos editados pela carioca Jorge Zahar Editora. "É dos autores mais instigantes da atualidade, que contribuem de forma ampla para reconstruir um arcabouço teórico da esquerda no mundo", diz Ivana.
O catálogo da Boitempo é ideologicamente orientado para autores de esquerda e privilegia pensadores como o húngaro István Mészáros e o francês Alain Badiou. Mesmo do italiano Agamben os títulos escolhidos ("Estado de Exceção", "Profanações", "O Que Resta de Auschwitz", "O Reino e a Glória") foram os dedicados diretamente a questões políticas. "São filósofos engajados, que despertam interesse não apenas na academia, mas também nos meios sindical e político", reconhece.
Por ter identificado crescente interesse de alunos de graduação e até de ensino médio, a Boitempo se empenha em promover os autores nas universidades e se orgulha de lotar auditórios com os debates que organiza. Foi o que ocorreu quando o geógrafo inglês David Harvey esteve no Brasil, no início do ano, e reuniu multidões nas universidades para lançar "O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo". A Boitempo já tem comprados os direitos de "A Companion to Marx's Capital", com previsão de lançamento para o ano que vem. Sucesso de público em sala de aula, na Universidade da Cidade de Nova York, e na internet, onde as aulas estão disponíveis em vídeo, o livro é uma coletânea de seus cursos sobre Marx. O crescente interesse nesse filósofo alemão do século XIX é só mais uma prova de que o diagnóstico de Sloterdijk pode estar certo: a filosofia está morrendo, mas não consegue morrer porque sua tarefa não foi cumprida.
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*Carla Rodrigues é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), doutora em filosofia e pesquisadora do CNPq
Fonte: Valor Econômico on line, 31/08/2012 - http://www.valor.com.br/cultura/2811542/filosofia-esta-viva

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